Gare de Brenner.

A nova cortina de ferro passa por Brenner

Esta fronteira entre a Áustria e a Itália é um dos pontos de fratura da política de imigração da UE: a polícia austríaca tenta, por todos os meios, reter os migrantes que vão para norte enquanto os seus homólogos italianos fazem de conta que não estão a ver.

Publicado em 11 Outubro 2013 às 11:38
Gare de Brenner.

“Nein”. A ordem do polícia austríaco não tem apelo: “Die Flüchtlinge bleiben in Italien” [os refugiados ficam em Itália]. Aqui não se passa. É a barreira de Brenner para os migrantes que tentam entrar na fortaleza da Europa. E “nein”, é “nein”. Ponto final. É inútil tentar apelar à sensibilidade, o regulamento é o regulamento. Com ou sem Schengen e sobretudo aqui.

A portela de Brenner, fica a 1400 metros de altitude. Lampedusa fica 1836 km a sul, no meio do Mediterrâneo, ponto extremo do território italiano. Os migrantes atravessaram o território continental italiano na esperança de irem mais para norte. Para a Alemanha ou a Escandinávia e os seus lendários Estados-Providência.

Noutros tempos esta era uma fronteira física. Com polícias, carabineiros e agentes das finanças e das alfândegas. Tinha barreiras, grades, câmaras de vigilância. Existiam controlos, todos os veículos eram parados para controlo. Era preciso ter passaporte. A mudança deu-se em abril de 1998: as barreiras foram removidas e, sem darmos por isso, estamos a entrar na Áustria.

Quatro mil veículos passam aqui todos os dias, ou seja, 14,6 milhões por ano, dos quais 70% são carros e motos, e os restantes 30% veículos pesados. Quem trava os migrantes encafuados nos carros (até seis pessoas, não contando com o passador) ou dissimulados nos camiões? Ninguém, de certeza.

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Áustria impenetrável

Para os que optam pelo comboio as coisas são diferentes. Muito diferentes. A Áustria tornou-se impenetrável, um pouco como a Suíça. Há recusas sistemáticas na fronteira, sem dó nem piedade, são reveladoras de uma Europa que não se preocupa com a Itália, as suas costas e os “seus” migrantes. Nós, pelo menos, não expulsamos as pessoas vulneráveis: as mulheres, as crianças, os idosos, os deficientes.

A legislação de Viena não prevê este tipo de exceção. E Viena pode invocar um documento igualmente importante: o tratado bilateral assinado com a Itália, segundo o qual a imigração clandestina pode ser “devolvida ao território onde se presume que tenha chegado de forma ilegal”. Dito por outras palavras: “são vossos, tomem conta deles”. É o mesmo tratado que permite à França e à Eslovénia reenviar migrantes para Vintimille e Tarvisio, dois outros pontos de passagem para lá dos Alpes. É este mesmo tratado que a Itália, por seu lado, aplica para devolver migrantes à Tunísia.

Dezenas de comboios transitam todos os dias na pequena gare ferroviária de Brennero. A noite está reservada às mercadorias: os comboios de passageiros são raros. A Polfer, a nossa polícia ferroviária, está alerta. Mas sobretudo existem os agentes austríacos. Nos últimos meses, Viena enviou batalhões. Os gendarmes patrulham os comboios, “procuram” grupos inteiros de refugiados, obrigam-nos a descer e levam-nos de volta à fronteira. São tratados como encomendas de correio pelas burocracias europeias. Antigamente viajavam escondidos entre as composições, debaixo de pesadas lonas dentro de camiões frigoríficos. Hoje é nas gares que os encontramos, com bilhetes válidos.

“É preciso rever os acordos”, avisa o presidente da câmara de Bolzano, Lucio Carluccio. Em apenas três meses a Áustria reconduziu 881 pessoas à fronteira. Quase mil pessoas voltaram para sul de Brenner. Um quarto eram menores, metade vinha da Síria e o resto da Somália e da Eritreia.

Fantasmas

Quando se sentem encurralados na fronteira, as tensões exacerbam-se. [[Os imigrantes que não querem ficar em Itália porque o seu destino é a Alemanha ou qualquer outro país são cuidadosamente registados pela polícia italiana]]: uma vez efetuado o pedido de asilo a Itália, já não podem partir.

São fantasmas, destinados a ressurgir noutro lado qualquer. Talvez na Suécia. “Onde podem começar a trabalhar imediatamente (em Itália têm de esperar seis meses) e arranjar alojamento”, resume Andrea Tremolada da Organização Volontarius, ONG que toma conta de refugiados no Alto Adige.

Se a entrada na Áustria for recusada, são levados para uma caserna que alberga também o Comissariado de Brennero, mesmo em frente à estação dos comboios. É feito um relatório para que fiquem registados no Eurodac, a base de dados do Espaço Schengen. Ficam assim “localizáveis”, com um nome que corresponde a uma cara. Uma vez elaborada a ficha em Itália não podem reaparecer, como por magia, em qualquer outro país.

“A Áustria e a Alemanha devem ajudar a Itália”, reclama a Cáritas Itália. A 30 de agosto, o ministro dos Negócios Estrangeiros austríaco, Michael Spindelegger, anunciou que a Áustria, magnanimamente, estava disposta a acolher 500 refugiados sírios. Quinhentos, mas escolhidos a dedo: “em primeiro lugar as mulheres, as crianças e os cristãos”. Insólito mas autêntico!

Cobrou 1300 euros

Impulsionados pelo desespero, os clandestinos não param por nada. E voltam a tentar tantas vezes quantas forem precisas. Se forem apanhados nos comboios tentam a sorte a pé. Apanhados de novo, recorrem a um passador clandestino.

O caso mais recente foi detetado a 3 de outubro. Um motorista de táxi milanês foi apanhado na autoestrada de Vipiteno ao volante de uma carrinha Fiat Ducato com nove sírios a bordo. Confessou ter cobrado um total de 1300 euros. “E há outros”, diz ele de boa-fé. Há outros mas arrisca-se a apanhar três anos e meio de prisão por tráfico ilícito de migrantes. Para outros: um ano, um ano e meio no máximo, com pena suspensa e sem qualquer menção no registo criminal.

Neste jogo vale tudo. Sobretudo utilizando carros alugados. Se as coisas correrem mal, evita-se que o carro seja confiscado. Melhor ainda é fazer parte da rede que ajuda os refugiados, em primeiro lugar os afegãos, a mudarem de local sem deixar rasto. É pela voz de um funcionário descomplexado que sai uma verdade que não deixa de ser cínica. Olhando para nós de soslaio, afirma em voz baixa: “De tempos a tempos prendemos os passadores, mas para quê darmo-nos a esse trabalho? Mais valia agradecer-lhes: afinal eles libertam-nos de uma parte dos migrantes”.

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