A polícia dispersa os manifestantes em Ancara, a 1 de junho.

Erdoğan cercado na sua torre de marfim

Porque é que as manifestações contra um projeto urbanístico em Istambul se transformaram em protestos contra o poder do primeiro-ministro? Porque há já muito tempo que este último ignora as críticas e parece ter escolhido a fuga para a frente, considera um editorialista.

Publicado em 3 Junho 2013 às 14:46
A polícia dispersa os manifestantes em Ancara, a 1 de junho.

Se tivermos em conta as declarações feitas pelo primeiro-ministro após o início dos acontecimentos de Taskim, depressa se entende quais são os problemas em termos de democracia no nosso país. Recep Tayyip Erdoğan critica toda a gente: a oposição, os manifestantes e até mesmo a polícia que abusou do gás lacrimogéneo. Só não critica as suas ações e as do Governo. Até o governador de Istambul é poupado.

Portanto, os únicos responsáveis pelos últimos acontecimentos são os agentes policiais subalternos. Se se tratasse apenas de um abuso de poder por parte destes últimos, num regime democrático, o Governo teria de assumir a responsabilidade. Além disso, na Turquia não existem leis que definam claramente as condições em que o gás deve ser utilizado. O Governo que concedeu esse tipo de poder à polícia nem sequer se deu ao trabalho de legislar sobre a matéria.

Dito isto, a crise que começou no Parque Gezi ultrapassa largamente o uso excessivo de gás lacrimogéneo por parte da polícia. De facto, estamos perante um verdadeiro movimento de desobediência civil que se formou na sequência de uma mobilização contra o abate de árvores, cuja legitimidade jurídica é questionável [o Radikal revelou a existência de um relatório oficial de peritos que não reconhece qualquer legitimidade a este projeto de transformação do Parque Gezi]. E assistimos, em resposta, a uma forma de terrorismo de Estado que nega o direito das pessoas se reunirem e protestarem.

Restrições severas e tratamento violento

Erdoğan, que se isolou na sua torre de marfim, onde nenhuma crítica o pode atingir, recusa ver que os projetos que apresentou e que considera úteis para a coletividade levantam na verdade sérias objeções por parte de várias minorias da sociedade. Também não quer entender que esta sociedade já não aceita que todos os mecanismos de decisão estejam nas mãos de um só homem. Prefere não ver que o controlo dos meios de comunicação, o despedimento de editorialistas com opiniões críticas, a escolha de um nome para a terceira ponte que atravessa o Bósforo que chocou profundamente os alevitas [Ponte Yavuz Sultan Selim, do nome turco do sultão otomano Selim I, 1470-1520, conhecido por ter combatido o xiismo com o qual se relacionam os alevitas, xiitas heterodoxos da Anatólia], as restrições muito severas em matéria de consumo de álcool sob pretexto de medidas de saúde, assim como a violência da qual foram alvos os manifestantes do Parque Gezi criaram o sentimento de que tudo era imposto à força e que viviam sob o jugo da tirania.

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O primeiro-ministro gostaria que a ausência de críticas que caracteriza o ambiente do seu partido se estendesse a toda a sociedade. Não presta a mínima atenção às objeções dos conservadores, muçulmanos praticantes e liberais que o apoiaram durante muito tempo. Não quer ver o profundo descontentamento que reside na minoria é muito diferente da sociedade que promoveu a ascensão do seu autoritarismo quando podia ter criado o único regime democrático do mundo muçulmano que suscitava imenso interesse num plano internacional.

A virtude da flexibilidade

Não percebeu que o facto de tratar a minoria com respeito, apesar de dispor de uma ampla maioria, não era sinal de falta de poder mas de virtude, e que ao ser flexível não mostraria sinais de fraqueza, mas uma grande inteligência política.
Em vez de fazer um pouco de autocrítica, prefere atirar achas para a fogueira e esperar que o movimento de protesto seja apoiado por organizações radicais, para poder desacreditá-lo com mais facilidade. Ao declarar que tenciona destruir o centro cultural Atatürk [AKM, centro de congressos, sala de concertos e de ópera, situado na praça Taksim] para construir uma mesquita, esperando assim obter o apoio dos muçulmanos praticantes, está a apostar na polarização da sociedade e a tomar uma iniciativa extremamente arriscada.

Imprensa governamental

"Uma operação política"

Após um fim de semana de manifestações, o Yeni Safak decidiu dar destaque à "chantagem através da publicidade". Este diário pró-governamental explica que "algumas agências de publicidade internacionais deixaram de anunciar determinados produtos em vários órgãos de informação turcos, a pretexto de que os acontecimentos de Istambul prejudicavam a imagem desses produtos". "Dá a impressão de que, por trás de tudo isto, há uma operação política", garante o jornal.
O Yeni Safak divulga igualmente um relato de alegados atos de vandalismo por parte de manifestantes do bairro da Praça Taksim. Salientando a presença no local de "organizações ilegais", o jornal publica fotos de destruição de autocarros e a pilhagem de candeeiros públicos e acusa os manifestantes de "destruírem, sorrindo e divertindo-se". Refere também que alguns dos manifestantes terão cometido atos de agressão conta mulheres que usavam véus islâmicos.

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