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Escapar ao círculo vicioso

O reforço dos controlos nas fronteiras europeias não dissuade os emigrantes e beneficia os passadores. A melhor estratégia seria atacar a raiz do fenómeno – a pobreza nos países de origem dos imigrantes.

Publicado em 28 Outubro 2013 às 12:45

Khaled Bensalam tem 35 anos e possui uma larga experiência de navegação. O seu pai era pescador e, por isso, a família nunca passou fome. Começou a ir ao mar era ainda muito novo e, ao chegar à adolescência, já segurava o leme. Quando a pesca deixou de ser rentável, Bensalam trocou-a pelo contrabando de seres humanos. Da Tunísia, onde vive, a viagem até à Europa não é longa. A ilha italiana de Lampedusa fica apenas a 70 milhas, o que corresponde a 22 horas de navegação, se o mar estiver calmo. Depois de deduzidas as despesas (combustível, os pagamentos ao cunhado que angaria os clientes e os subornos para a guarda costeira), duas dessas viagens por ano permitir-lhe-iam viver num luxo relativo.

As duas primeiras, em 2012, correram sem problemas. Os jornalistas italianos até entrevistaram os passageiros; a embarcação de madeira de 36 pés transportava não mais de 50 pessoas. Os preços variavam entre os 1000 euros para os estrangeiros, os 800 para os tunisinos e os 500 por criança. Em abril, Bensalam sofreu a primeira adversidade; já perto de Lampedusa, antes do amanhecer, o seu barco foi acidentalmente iluminado pelo projetor de um barco-partulha italiano.

Minutos depois, os italianos estavam a bordo. Bensalam foi preso e, alguns dias mais tarde, deportado para a Tunísia, onde passou várias semanas na cadeia. A embarcação foi confiscada, mas Bensalam decidiu não desistir do negócio. Pediu dinheiro emprestado a parentes e, recorrendo aos serviços de um gang local, comprou um barco de 60 pés, com capacidade para 300 passageiros.

Quer dizer, em teoria: porque, quando voltou a fazer-se ao mar, em setembro, levava mais de 500 pessoas a bordo. Desta vez, tudo correu mal logo desde o princípio. Primeiro, alguém disparou contra eles, quando estavam a largar do porto, danificando o motor. Depois, a bomba de esgoto deixou de funcionar. Em seguida, os passageiros entraram em pânico. Quando o barco se afundou ao largo de Lampedusa, em 3 de outubro, pelo menos 350 imigrantes ilegais perderam a vida, no que viria a ser designado como a “catástrofe de Lampedusa”. Bensalam sobreviveu e está a aguardar julgamento. Mas, no mesmo dia, pelo menos dois outros barcos que transportavam imigrantes ilegais chegaram ao seu destino em segurança. Sem risco, não há recompensa, como costuma dizer-se.

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Novas rotas mais longas e perigosas

[[Para vergonha do mundo desenvolvido, o contrabando de seres humanos tem vindo a fazer cada vez mais vítimas]]. Só desde janeiro de 2013, cerca de 2000 pessoas afogaram-se junto à costa Sul da União Europeia – mais do que em todo o ano passado. O contrabando de emigrantes também se tornou um risco de segurança para os países de destino, que perderam o controlo das suas fronteiras. Por último, a imigração ilegal está a alimentar o sentimento de xenofobia, um fenómeno que é crescentemente explorado por políticos cínicos.

Os governos europeus gastam milhares de milhões de euros por ano, no combate ao problema. Vários Estados-membros da UE criaram agências especiais para lidar com a imigração ilegal. A Frontex, a agência de proteção das fronteiras da UE, está em funcionamento desde 2004. Tanto na UE como nos Estados Unidos, as fronteiras são patrulhadas e vigiadas com recurso às tecnologias mais recentes e mais avançadas, incluindo drones e satélites. Só na UE, trabalham na área da imigração ilegal mais de 300 ONG, em muitos casos subsidiadas por fundos públicos. Quais os efeitos? Praticamente nenhuns. O número de imigrantes ilegais que chegam ao continente continua a aumentar.

No seu livro sobre o contrabando de seres humanos, o autor marroquino Mehdi Lahlou descreve aquilo a que chama o “círculo vicioso” das políticas anti-imigração europeias. Os políticos, e também os órgãos de comunicação social, exploram as tragédias como o desastre de Lampedusa de 3 de outubro para empolar o problema da imigração, levando os governos a reduzir ainda mais as possibilidades de imigração legal. Por seu turno, esse facto obriga os emigrantes a procurar vias de acesso cada vez mais perigosas, aumentando a sua dependência dos passadores. Lahlou salienta que foi precisamente isso que aconteceu, quando a Espanha e a Itália introduziram os vistos para os cidadãos do Magrebe, no começo dos anos de 1990, e os britânicos conseguiram bloquear a rota do contrabando através de Gibraltar. Quase de imediato, foram ativadas novas rotas mais longas e mais perigosas: do Sara Ocidental para as Ilhas Canárias e através do Mediterrâneo para Itália.

O insucesso da Europa na resolução do problema do contrabando de seres humanos deve-se, em grande parte, a um entendimento errado. Para começar, existe uma confusão de terminologia, porque as expressões “tráfico de seres humanos” e “contrabando de seres humanos” são muitas vezes usadas indiferenciadamente no debate público europeu, quando, na realidade, refletem dois fenómenos completamente diferentes. O tráfico é uma forma de escravatura e o contrabando é voluntário. [[A relação entre o passador e a pessoa contrabandeada termina no país de destino, ou seja, no local onde a relação traficante/escravo começa]].

A procura suscita a oferta

A política de imigração da UE centra-se há muito nos passadores, isto é, na vertente da oferta de um serviço ilegal. Depois da catástrofe de Lampedusa, o primeiro-ministro italiano, Enrico Letta, prometeu um novo pacote legislativo “ar e mar”, que irá prever que a Itália destaque três vezes mais navios e aeronaves para a zona entre África e a Sicília, para combater esta forma de contrabando. Mas, mais uma vez, o efeito pode ser contraproducente.

Neste domínio, é a procura (potenciais imigrantes) que suscita a oferta (passadores). Enquanto houver pessoas originárias de África, do Afeganistão ou do México que querem abandonar os seus países para tentar ter uma vida melhor, haverá sempre quem esteja disposto a ajudá-las, por um determinado preço, independentemente das dificuldades.

Segundo alguns especialistas em imigração, a única maneira de acabar com o contrabando de seres humanos para a Europa – ou, pelo menos, de reduzir a sua dimensão – é criar, nos países de origem, condições que levem os candidatos a imigrantes a deixar de estar interessados em emigrar. Por outras palavras, garantir que estes encontrem nos seus países o emprego que sonham conseguir na Europa. Contudo, isso implicaria abrir o mercado europeu – para começar, o dos alimentos – a produtos de regiões como o Norte de África, o que é impossível por razões políticas. A UE gasta anualmente 100 milhões de euros na proteção das suas fronteiras, através da Frontex – 600 vezes menos do que gasta com a Política Agrícola Comum. Portanto, se não querem couves tunisinas na Europa, os europeus acabarão, mais cedo ou mais tarde, por ter os próprios tunisinos no continente.

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