Putin errou em tudo com a Ucrânia

A Rússia pode ter ficado muito satisfeita consigo própria, quando a Ucrânia se recusou a assinar um acordo de associação com a UE, mas a vaga de protestos populares que essa recusa desencadeou ameaça derrubar o Governo e pode despertar um sentimento pró-democracia em Moscovo.

Publicado em 3 Dezembro 2013 às 16:59

Na última década, o acontecimento que mais assombrou o Kremlin foi a Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004. Agora, o pior momento de Vladimir Putin parece estar a transformar-se num pesadelo que se repete, com os manifestantes a encherem, mais uma vez, a Praça da Independência, em Kiev, exigindo que o seu país se aproxime mais da UE e se distancie da Rússia.

As manifestações na Ucrânia são uma humilhação e uma ameaça para Putin. O Presidente russo pode louvar os profundos laços culturais e históricos entre a Ucrânia e a Rússia, mas está a descobrir que dezenas de milhares de ucranianos prefeririam enfrentar temperaturas gélidas e golpes de bastão a serem arrastados mais para o interior da esfera de influência russa.

Mais ainda: se um levantamento popular conduzir, de novo, à queda de um Governo corrupto e intermitentemente despótico na Ucrânia, a possível lição para a Rússia é clara. Afinal, há menos de dois anos, os manifestantes encheram as ruas de Moscovo, em protesto contra o regresso de Putin e rotulando o seu Rússia Unida de “partido de vigaristas e ladrões”.

Levantamento pró-UE

Um levantamento pró-UE na Ucrânia também põe em risco a visão do Presidente Putin para a Rússia e para o mundo. O seu principal objetivo de política externa é a construção de uma esfera de influência da Rússia, que se estenda à maior parte da antiga União Soviética. Com 45 milhões de habitantes, um vasto território, recursos económicos e os laços de longa data com a Rússia, a Ucrânia deveria ser a joia da coroa. É muito mais importante do que a Moldávia e a Bielorrússia. [[Se os ucranianos se voltarem para Ocidente, e não para Leste, a política externa de Putin cairá por terra]].

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No entanto, a culpa pelo rumo que os acontecimentos estão a seguir é do próprio Governo russo. Este deu início a um terrível braço de ferro com a UE sobre o destino do país vizinho, esquecendo o ensinamento óbvio da Revolução Laranja original: quando se tenta decidir o futuro da Ucrânia, ignorando o seu povo, as pessoas podem sair à rua em números tão elevados que podem mudar o rumo político do país.

Numa tentativa de convencer a Ucrânia a olhar para Moscovo, e não para Bruxelas, os russos aproximaram-se do Governo de Yanukovych, com dinheiro numa mão e o pau na outra. Durante o verão, foram postas em vigor restrições ao comércio de produtos ucranianos, para deixar claro que, se voltasse as costas à Rússia, o país teria que pagar um preço elevado. Ao mesmo tempo, os russos fizeram um apelo direto aos interesses financeiros da Ucrânia – e, de forma mais pertinente, à elite ucraniana.

Duas reuniões recentes entre Putin e o Presidente Viktor Yanukovych parecem ter sido decisivas, para convencer o dirigente ucraniano de que era do seu interesse – e do interesse da sua família e dos seus aliados próximos – colocarem-se do lado de Moscovo. Na Ucrânia, a proximidade ao poder é quase sempre o caminho para a riqueza. O filho do Presidente, Alexander, que tirou o curso de dentista, é agora um empresário muito rico e bem relacionado.

O momento em que o dirigente ucraniano anunciou que não iria assinar o acordo de associação com a UE deve ter tido o doce sabor da vitória em Moscovo. Mas esse triunfo foi de curta duração. Mesmo que a brutal polícia de Yanukovych consiga fazer calar a oposição, o Governo ucraniano ficará gravemente ferido – e a ideia de uma união eurasiática sairá prejudicada.

O espetro da Revolução Laranja

Putin talvez tenha feito mal os cálculos, porque acredita na sua própria propaganda sobre a Revolução Laranja. Na sua opinião, não se tratou de um levantamento popular genuíno e, sim, de um acontecimento fabricado pelos serviços secretos ocidentais, que usaram como instrumentos organizações não governamentais financiadas pelos EUA e pela UE. Para Putin, as chamadas “revoluções coloridas” são duplamente sinistras. Em primeiro lugar, envolvem o risco de arrancar nações à esfera de influência natural da Rússia e de as lançar na órbita do Ocidente. Em segundo lugar, podem servir de modelo a levantamentos semelhantes na própria Rússia. De facto, quando se verificaram manifestações contra as eleições duvidosas na Rússia, no inverno de 2011-2012, a reação do Kremlin foi reprimir as ONG ocidentais, que alegou terem causado a agitação.

[[A ideia de uma revolta popular ser verdadeiramente popular – e não o resultado de manobras de bastidores – parece ser uma ideia que o Governo de Putin tem dificuldade em entender]]. (Em alguns aspetos, esse facto é estranho, tendo em conta a própria História da Rússia – embora talvez não seja assim tão estranho, se pensarmos no papel desempenhado pela conspiração na tomada do poder pelos bolcheviques, em outubro de 1917.)

Esta visão limitada e conspiratória das revoluções coloridas originais talvez tenha tornado Moscovo vulnerável a outra surpresa desagradável nas ruas da Ucrânia, quando cidadãos comuns agiram para anular acordos feitos nas suas costas por dirigentes que consideram corruptos e ilegítimos.

Na sua qualidade de nacionalista russo, Putin gosta de afirmar que a Rússia é uma “civilização” impar – diferente da da Europa. Assim, para ele, a luta pela Ucrânia não tem apenas a ver com riqueza e poder: é uma questão civilizacional. A ideia de que a classe média ucraniana possa sentir-se mais atraída pelas civilizações da Polónia, da Alemanha ou do Reino Unido – em vez de pela da Rússia – é ofensiva para os nacionalistas russos, presentes no Kremlin e fora dele.

Contudo, na realidade, a perspetiva de a Ucrânia se aproximar do resto da Europa – e, de caminho, passar a ser um país mais rico e melhor governado – seria do interesse da Rússia. Poderia servir como modelo para a futura evolução da própria Rússia. Mas, precisamente por isso, os acontecimentos na Ucrânia constituem uma enorme ameaça para os interesses pessoais e para a ideologia do Presidente Putin e dos seus próximos.

Visto de Moscovo

O Ocidente sempre teve os olhos postos na Ucrânia

Este país da Europa meridional com 45 milhões de habitantes, banhado pelo Mar Negro sempre foi “isco apetecível”, escreve num artigo de opinião, publicado pelo Izvestia, o escritor e opositor russo Eduard Limonov.

“Bem maior do que a Polónia”, a Ucrânia atraiu sempre o Ocidente, acrescenta Limonov que, depois de ter vivido durante muitos anos em Paris e em Nova Iorque, regressou a Moscovo no início do ano 2000 para criar um partido “nacional-bolchevique” para defender a grandeza perdida da Rússia. “Lembram-se da batalha de Poltava, em 1709? Pushkin narrou o que aconteceu num poema. Quem estava contra nós? A Suécia e a Polónia. Os mesmos países que, 300 anos mais tarde, fazem todos os possíveis para colocar a Ucrânia na órbita europeia”. Limonov conclui:

Dá para ver claramente que a História se está a repetir como se nada tivesse acontecido. O Ocidente continua a calcar-nos e a sua natureza agressiva não mudou ao longo dos anos. O Ocidente devora as nossas antigas repúblicas, uma após outra, e não para de nos desafiar. Hoje, é a nossa vez de o desafiar.

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