"Sem preocupações." Um cliente passa por uma loja cheia de grafitis em Dublin.

Um dia diferente, a mesma austeridade

Em 16 de dezembro, a Irlanda ficou finalmente livre dos três anos de planeamento económico paralisador da troika. No entanto, apesar de o Governo de Dublin ter recuperado a soberania financeira, o país irá descobrir que, do mesmo modo que contribuíram para boa parte da crise, os acontecimentos irão influenciar a política do período pós-troika.

Publicado em 16 Dezembro 2013 às 17:20
"Sem preocupações." Um cliente passa por uma loja cheia de grafitis em Dublin.

No auge da crise financeira, estive presente numa festa, em casa de uma das muitas pessoas que foram contratadas para pôr em ordem as finanças do país.

Ao fim da noite, a porta abriu-se e cinco homens atravessaram a sala com uma pose que me fez pensar que eles tinham acabado de sair de um dos filmes da série Homens de Preto.

Perguntei quem eram os convidados que tinham acabado de chegar e responderam-me que eram os inspetores “do FMI e do BCE”, que estavam no país para avaliar os nossos progressos.

Os homens, de fato preto e cabelo penteado para trás, transpiravam confiança.

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Enquanto as outras pessoas olhavam sombriamente para o fundo do copo, usando um tom alegre e um tanto presunçoso, os tais homens apresentaram o seu julgamento sobre o que tinha corrido mal no país e informaram-nos de que tínhamos pela frente um caminho difícil.

Acho que nunca me senti tão deprimido depois de uma festa como me senti depois daquela.

E, hoje de manhã, passados três anos, vamos sair de casa para ir trabalhar, sabendo que já não estamos sob o jugo da troika.

Crescimento modesto

Todos os gritos e lamentos que acompanharam a chamada perda de soberania do país, em 2010, deveriam ser substituídos por uma nova confiança, no momento em que damos os primeiros passos na tão apregoada via da recuperação. Mas será que, esta manhã, algum de nós se sente realmente diferente?

Provavelmente não.

É óbvio que a saída do resgate é um passo positivo, mas, tal como boa parte da crise económica, esse passo esteve fora do nosso controlo. E o mesmo acontecerá com os próximos cinco anos de recuperação.

Muitos países da UE anunciaram o fim da recessão, mas o fraco crescimento de 0,2% registado na UE, no terceiro trimestre, afirma o contrário. O forte crescimento alemão caiu para 0,3% e a economia francesa desacelerou, caindo para 0,1%.

No bloco dos 17 países que usam o euro, o crescimento diminuiu para apenas 0,1% e a recuperação ainda está a sofrer uma estabilização lenta, ao fim de quase três anos de recessão.

O modesto crescimento foi induzido por um aumento das despesas de consumo, mas as finanças públicas continuam debilitadas.

É significativo que o crescimento tenha abrandado em relação aos 0,3% do segundo trimestre de 2013.

Na Alemanha, o motor económico da zona euro, o PIB cresceu 0,3%, mas, segundo o Serviço Federal de Estatística, isso deveu-se exclusivamente à procura interna.

A Alemanha continua a ser o principal motor de crescimento, visto que as despesas de consumo e as exportações se mantêm fortes.

Frágil sustentabilidade

Entretanto, no que se refere ao nosso país, a declaração franca e aberta da diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, na noite da passada sexta-feira, disse tudo.

Embora tenha admitido que a Irlanda está na via da recuperação, Christine Lagarde afirmou que a sustentabilidade da dívida pública “continua frágil”.

Não há dúvida de que os desafios económicos se mantêm. [[O desemprego é demasiado elevado, a sustentabilidade da dívida pública continua a ser frágil e as dívidas do setor privado representam uma carga que dificulta a recuperação]].

Os bancos que estiveram na origem da crise financeira continuam não estar de boa saúde, uma vez que as prestações hipotecárias em atraso e os empréstimos não reembolsados continuam e exercer pressão negativa sobre os seus balanços.

“A aplicação continuada de uma política concertada e, portanto, necessária para a Irlanda recuperar plenamente da crise”, declarou Christine Lagarde.

O que é uma forma codificada de dizer: “Preparem-se para mais alguns anos difíceis.”

Na semana passada, o ministro das Finanças, Michael Noonan, advertiu: “não podemos enlouquecer outra vez”. Muitas pessoas argumentarão que nunca enlouqueceram.

Vidas viradas do avesso

Nenhum outro país da Europa mostrou ser tão flexível e dinâmico. Toda a gente sentiu, a nível financeiro e a nível mental, o sofrimento causado pela presença da troika.

A sua saída merece ser comemorada e, na verdade, aprendemos com ela.

Ao longo dos três últimos anos, as vidas dos cidadãos foram viradas do avesso, dezenas de milhares de pessoas perderam os empregos e muitas mais emigraram.

As saídas à noite foram substituídas por sessões de cinema em casa, os Toyota Avensis que costumavam ser trocados de três em três ou de quatro em quatro anos continuam a ser utilizados.

[[Muitas crianças foram tiradas das escolas privadas, várias pessoas perderam as casas, as poupanças e as pensões]].

Hoje de manhã, começamos a seguir um novo caminho. Todos nós sabemos que não vai ser fácil, mas, pelo menos, sabemos que o pior já passou.

Se, até agora, conseguiu manter o seu emprego/casa/negócio, há fortes possibilidades de, agora, ter ficado livre de problemas.

Devíamos dar pancadinhas nas costas uns dos outros, por termos ido tão longe, como país.

E, hoje, devíamos conceder-nos uns instantes, para tentarmos imitar a pose dos Homens de Preto, que felizmente já se foram embora, à procura de outra “festa”.

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