Tahar Rahim representa o papel de um prisioneiro em "Um Profeta", de Jacques Audiard. Foto: Celluloid Dreams / UGC Distribution

“Um profeta”, o domínio através da língua

O filme de Jacques Audiard “Un Prophète” [Um profeta] arrebatou o júri dos Césares de França, e parece prestes a ganhar o Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro. Uma das lições é que, neste mundo cada vez mais rapidamente globalizado, o futuro pertence aos que dominam duas ou mesmo três línguas.

Publicado em 2 Março 2010 às 12:21
Tahar Rahim representa o papel de um prisioneiro em "Um Profeta", de Jacques Audiard. Foto: Celluloid Dreams / UGC Distribution

O realizador Jacques Audiard foi sempre óptimo a captar o que vai nas ruas e a visitar as profundezas e as variações da vida contemporânea, de modo a gerar o máximo de ruído branco sobre o espírito do momento nas suas películas. No seu novo filme “Um Profeta”, é através da língua que ele realmente nos dá isso em pleno. As evoluções poliglotas de francês, árabe e corso devem pôr os tradutores a suar as estopinhas. O resultado é uma reflexão muito ponderada sobre o caos multicultural e o delirante emaranhado de falas que compõe a vida social e as negociações na maioria das capitais globais de hoje.

O inglês continua, naturalmente, a ser a língua dominante, no cinema como em todos os campos. Mas o que se torna entusiasmante do ponto de vista artístico é o sentimento crescente de que o inglês já não é sinónimo da realidade dominante, que está em competição dinâmica com outras línguas, logo, implicitamente, outras perspectivas. Estamos finalmente a ver revelar-se as colisões e as confusões resultantes, mesmo no cinema das pipocas.

Linguisticamente falando, “Quem quer ser bilionário?”, de David Boyle, não foi revolucionário; o que foi notável foi uma película com um terço das falas em hindi recolher tantos Óscares. Quentin Tarantino – sempre de orelha fita – elevou as coisas a um novo patamar, no Verão passado. O coronel multilinguista Hans Landa de “Sacanas sem lei” manipula teatralmente o inglês, o francês, o italiano e a sua “liebe Muttersprache” [adorada língua materna] como um “compère” [mestre de cerimónias] de um musical das SS. Tarantino sabe que vivemos hoje num mundo multilingue – rigorosamente o único lado pioneiro nesse seu filme.

O lado obscuro da língua

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Mas “Um profeta” – bastante mais próximo da ponta do espectro do cinema de autor – é muito mais sofisticado do que os dois mencionados. A película de Audiard é construída com base na estratégia de dramatização das diferenças culturais. A língua e a habilidade para a manipular são intermutáveis. O francês, e não o inglês, é a língua franca na prisão, mas é a fluência de Malik (Tahar Rahim) noutras línguas que conduz a trama e a sua ascensão ao poder. Depois de recrutado por um corso, começa por aprender a ler, a seguir apanha o dialecto utilizado pelos chefões nas suas conversas confidenciais (sem que eles se apercebam).

É este, a meu ver, o sentido em que Malik é o profeta do título, e não devido às cenas visionárias em que Audiard se envolve. Ele vê literalmente mais longe do que qualquer outra personagem, porque é a única pessoa que sabe falar três línguas, e não duas, o que lhe permite avaliar e jogar com os grupos de poder corso e árabe da prisão a seu belo prazer. O filme capta o lado obscuro da língua – o seu relacionamento com o poder –, que pode ser um emblema de pertença, mas também serve para excluir. E aproveita-se do facto de ela não ser estática, envolver erros, enganos e incompreensões, servindo de moeda de troca para operadores espertos como Malik.

Malik progride fazendo apenas de intermediário matreiro, mas não sabemos praticamente nada sobre o seu passado, para além da sensação desestabilizadora de ser um magrebino afrancesado, tão marginalizado pela sociedade moderna como afastado da sua herança árabe.

Encalhado numa terra cultural de ninguém, Malik tem de forjar o seu próprio destino – uma lição para todos nós, num mundo cada vez mais complexo. É quase um representante das massas multilingues e da miscigenação em rápido crescimento, que são a etapa que se segue às velhas monoculturas. Os poliglotas são os mais bem colocados para prosperar, quando os padrões do poder mundial se vão complicando e tornando difíceis de acompanhar. É a hora do intermediário, do embaixador, do agente mediador. Por outras palavras: Malik é o futuro. O mundo globalizado precisa de mais cinema linguístico como “Um profeta” – ágil, vigilante e oportuno. Se o filão dos telemóveis já esgotou as suas possibilidades em termos de argumento para novos filmes, talvez estes recém-descobertos túneis semânticos mereçam ser agora explorados.

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