Sob um céu azul matinal, Giovanni compra o jornal e instala-se num banco de pedra, no cais Riva degli Schiavoni, à sombra de um dos enormes iates atracados na Bacia de São Marcos. Repete o cerimonial de sempre: fuma um cigarro de tabaco negro a ver passar a multidão de turistas e começa a ler o jornal na secção desporto. Guido, o amigo também reformado, chega um pouco mais tarde com a cana de pesca. Está convencido de que aqueles “cabin-cruisers”, parados nos lugares vagos entre o Palácio dos Doges e os Giardini, que vieram quase todos para a abertura da Bienalde Arte Contemporânea, atraem os peixes. Enquanto Giovanni lê, Guido pesca. A Bienal não lhes interessa e, à excepção da sombra que projectam sobre o cais e dos peixes que vão atrair, os iates muito menos.
Atrás deles, uma enorme bandeirola pendurada na fachada informa que o interior da velha Caserna Cornoldi é transformado, durante a Bienal, em pavilhão para o Principado do Mónaco, guardado à entrada por dois guardas fardados. Um pouco mais à frente, em direcção ao Palácio dos Doges, um outro pendente anuncia o pavilhão de Marrocos, instalado na igreja de Santa Maria della Pieta. É cada vez maior o número de países sem pavilhão oficial nos jardins do Castello (os Giardini, local histórico da Bienal) que ocupam palácios e igrejas um pouco por todo o lado. Na véspera, num “vaporetto” superlotado com destino a Giudecca, uma francesa ao cruzar-se com outra pergunta-lhe: "Vais aos galeses?" Queria com isso referir-se ao pavilhão do País de Gales, instalado numa antiga cervejaria da ilha, ao cuidado de John Cale, ex-compositor dos Velvet Underground.
Disseminados pelo arquipélago, são às dezenas os pavilhões anunciados com grandes letreiros, onde os turistas não se atrevem a entrar e que os venezianos observam muitas vezes com um olhar reprovador. É o caso da antiga Scuola Grande della Misericordia, na zona Norte da ilha, no bairro Cannaregio, onde se encontra Zilvinas Kempinas, um artista lituano especialista na reciclagem de fitas magnéticas de cassetes de vídeo, que as utiliza aqui na construção de um túnel. Talvez este artista não saiba que esta escola, edificada na segunda metade do século XVI por Sansovino, arquitecto e escultor romano, corresponde à célebre escola veneziana, a Escola Grande de San Rocco, concebida por Bartolomeo Bon e terminada em 1549 por Scarpagnino. Duas senhoras do bairro conhecem a história do edifício, a proeza arquitectónica que representa (a sala de reuniões do primeiro andar é, pela sua extensão, a segunda na cidade a seguir à do Palácio dos Doges) e não parecem apreciar nada, nem o túnel nem o papel de alumínio que reveste a parede do fundo, mesmo quando, a poucos metros de distância, na igreja Madonna dell'Orto, se encontra “O Último Julgamento” de Tintoretto. A arte que defende e reivindica uma sociedade reflecte igualmente a qualidade da sua ambição.
O desenvolvimento da Bienal e a sua dispersão pela cidade parecem estar na proporção inversa do interesse dos venezianos, asfixiados quase todo o ano pelo turismo. Não é o único paradoxo: quanto mais o planeta se globaliza, mais a Bienal se revela um conjunto de nacionalismos. A 30 de Abril de 1895, por ocasião do arranque da primeira edição, não havia um único pavilhão nos Giardini, onde decorreu uma grande exposição. A Bélgica construiu o primeiro pavilhão estrangeiro em 1907 e a França idealizou o seu cinco anos mais tarde. Actualmente há trinta pavilhões nos Giardini, a que se acrescentam mais trinta e cinco espalhados pela cidade. Em 2011, até o Vaticano terá um – talvez como reacção à forte presença dos Países do Golfo (um pavilhão para os Emirados Árabes Unidos e outro para Abu Dhabi, a capital). Todos se confrontam, numa competição mais política do que artística, por uma questão de influência, poder e riqueza. Assistiu-se então à decadência: a Bienal de 1964, ao privilegiar o pintor americano Rauschenberg em detrimento do francês Bissière, veio confirmar o fim do império colonial francês.
Assistimos hoje ao nascer de novas glórias: a China, alojada neste momento num hangar, ao fundo do Arsenal, ao lado do pavilhão de Itália, não tardará a conseguir autorização para construir um verdadeiro pavilhão nos Giardini. Num certo sentido, a Bienal de Veneza, com aqueles pavilhões nacionais, traça o mapa económico e geopolítico do planeta – há quatro anos, os organizadores tiveram a "generosa" ideia de oferecer um pavilhão a África, esquecendo-se de que África não é um país mas um continente composto por cinquenta e quatro países. Compreendemos agora as prioridades de Giovanni, Guido e da maior parte dos venezianos: Itália continua a ser uma das primeiras potências mundiais... no futebol.
A atenção dos dois amigos centra-se exclusivamente na classificação catastrófica obtida pela equipa de futebol local: o SSC Venezia esteve prestes a descer de divisão. O clube salvou-se no último jogo da divisão graças a empate obtido no campo do Pro Sesto (Sesto San Giovanni, na Lombardia). Mas isto foi depois da abertura da Bienal, e o mundo da arte há muito que tinha saído de Veneza em direcção a Foire (Basileia), na Suíça, deixando os Giardini, pouco frequentados pelos turistas, sob uma violenta tempestade.
VISITA
Boas surpresas
"A Bienal de Veneza é um acontecimento assinalável. Poucos a apreciam verdadeiramente e, no entanto, todos lá querem estar", escreve Jan Skřivánek, redactor principal da revista checa Art + Antiques. Mas considera que este ano a bienal foi diferente: o pavilhão da República Checa e Eslovaca foi seguramente um dos mais interessantes. "Ao pôr árvores e vegetação no interior do pavilhão, o artista Roman Ondák quis anular a fronteira entre realidade normal ‘não artística’ e galeria de arte", explica Skřivánek. Como se o pavilhão não existisse. "Interpretámos esta instalação como uma crítica ao conceito de exposição nacional, como a representação do pavilhão de um Estado checoslovaco inexistente."
O Leão de Ouro para Melhor Pavilhão foi atribuído aos americanos pela instalação, "O Círculo das Mãos", de Bruce Nauman. Mas o jornalista nota que os países escandinavos, que partilham o mesmo pavilhão, "foram os mais bem sucedidos". Os elementos decorativos dos dois pavilhões transformados em "villa" de luxo são obras de arte emprestadas por coleccionadores privados.
"Os alemães deram que falar ao entregar o pavilhão do seu país a um inglês que vive em Berlim", acrescenta Jan Skřivánek. "E como é seu costume, os russos marcaram presença com uma obra de arte radical: uma mota que atravessa uma parede, um espaço maculado pela essência e o sangue do sacrifício das vítimas da guerra na Chechénia."