Em Belfast “vivemos em dois mundos diferentes”

Há mês e meio que católicos republicanos e protestantes fiéis a coroa se defrontam em torno da presença ou ausência da bandeira britânica na Câmara de Belfast. Mas esta hostilidade é latente por toda a parte, no quotidiano, constata um jornalista espanho.... na Rua de Madrid.

Publicado em 18 Janeiro 2013 às 12:30

Em Belfast, há 99 "linhas de paz" destinadas a refrear a guerra diária entre católicos e protestantes. Em Belfast, há uma rua chamada Madrid, que acaba abruptamente num muro de Berlim. O paredão consiste numa parte de tijolo, outra de ferro e outra de aço. Tem mais de sete metros de altura e é rematado por arame farpado. O seu objetivo é não apenas impedir que as pessoas saltem de um lado para o outro mas, também, evitar que sejam atiradas pedras, pregos e bombas caseiras de petróleo. Chamam-lhe “linha de paz”, para não lhe chamarem muro da vergonha. Serve para separar protestantes e católicos…
Há alguns dias, ao amanhecer, no leste de Belfast, viam-se automóveis queimados, vidros partidos e restos das pedras atiradas contra a polícia. Na paisagem desolada de depois da batalha, erguiam-se imutáveis os muros, parentes não muito distantes dos de Gaza e da Cisjordânia, com o ar incómodo de campo de concentração, bombardeados por grafitis em honra dos lealistas encapuçados do Ulster ou dos mártires republicanos do IRA.
A capital da Irlanda do Norte está literalmente emparedada por muros de separação como este da rua de Madrid. Segundo a última contagem, os tapumes da vergonha são já 99 e multiplicaram-se precisamente desde o Acordo de Sexta-feira Santa [de 1998]. É a isto que chamam paz?

Habitantes mais bem protegidos?

A polícia garante que, sem as “linhas de paz”, a cidade estaria em guerra permanente. Os taxistas levam-nos diretamente até às fortificações, contra as quais os moradores atiram a sua impotência e a sua cólera e que são a principal atração turística da sangrenta Belfast.
O muro da rua de Madrid fica um pouco fora de caminho e não está incluído nos passeios. Fica do outro lado do rio Lagan, ou seja, no violento leste. São 6000 os católicos confinados ao bairro de Short Strand, uma espécie de triste gueto urbano de tijolo, frente a 60 mil protestantes, que lhes recordam que vivem por favor na zona lealista.
Ao domingo de manhã, não há vivalma em Madrid Street. Ao passar, ouvimos vozes distantes, portadas que se fecham, o latido de um cão. Finalmente, avistamos um homem já entrado nos anos, que saiu para fumar um cigarro. Estamos no número 123, aos pés do imponente muro.
É verdade que, à primeira vista, inspira respeito. Mas, desde que o construíram sentimo-nos mais seguros e protegidos”, reconhece Phil Fermanagh, pedreiro reformado, preparado para nos falar dos impactos dos pregos que frequentemente choviam sobre a sua casa…
Agora, pelo menos, podemos dormir descansados e não ver todos os dias lutas nas ruas, nem ouvir tiros à noite”, acrescenta. “Eu próprio distribuí uns bons murros, aqui no bairro, sobretudo quando era novo. Sei que não é muito católico, mas crescemos a odiar o vizinho, e vice-versa. Madrid Street foi uma das zonas mais quentes durante os Troubles [“problemas”, nome por que ficou conhecido o período mais violento na Irlanda do Norte, entre o fim dos anos 1960 e o Acordo de Sexta-feira Santa]. Enfim, é claro que, se perguntar às pessoas do outro lado, o tom será outro”.

“Adoramos o mesmo Deus”

Para chegar ao “outro lado”, à zona protestante, é preciso seguir ao longo de meio quilómetro de muro, por Bryson Street, e persignarmo-nos diante da igreja de St. Matthews (palco da famosa batalha entre católicos e protestantes, em que houve dois mortos e dezenas de feridos, em 1970).
Loyalist East Belfast” [Belfast oriental lealista], pode ler-se no mural de onde nos vigiam os algozes da Associação de Defesa do Ulster [paramilitares lealistas], que nos seguem onde quer que vamos, com os canos das espingardas pintados. Por todo o lado, um exagero incessante de Union Jacks [bandeira do Reino Unido], a ondear ao vento…
É um insulto o que fizeram com a bandeira e é por isso que nos manifestamos”, reconhece Heather Murray, de 37 anos, moradora em Susan Street, do outro lado do muro. “O que aconteceu [durante os distúrbios] foi por culpa da polícia, que não deixou que os nossos voltassem para casa. Eu não estive lá, foi o meu marido. Tenho dois filhos pequenos e tenho medo de sair à rua, com tudo o que está a passar-se. A polícia está sempre a provocar-nos. É o mundo de pernas para o ar: voltaram-se contra nós.
Tal como 68% dos protestantes de Belfast, Heather Murray admite que não fala com os vizinhos católicos. “Vivemos em dois mundos diferentes, queremos um futuro diferente para o Ulster e acreditamos noutras coisas. Apesar de que, no fundo, penso que rezamos ao mesmo Deus e que, um dia, Ele há de ouvir as nossas preces”.

Contexto

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Por trás da violência, a perda de influência dos protestantes

He continues –

Os protestos de Belfast estão relacionados com a nova realidade demográfica, política e econónica da cidade, explica o correspondente de The Independent na Irlanda, David McKittrick.
Os resultados do último recensamento mosdtram que a cidade, que outrora era um “bastião orgulhoso da ética de trabalho protestante” perdeu a sua maioria protestante. Isso explica que “a Câmara tenha decidido reduzir o número de vezes em que hasteia a bandeira: os vereadores unionistas perderam a votação*”. David McKittrick continue:

A Irlanda do Norte é gerida, hoje, segundo um novo paradigma político, de que Ian Paisley foi pioneiro, e que junta no Governo lealistas e republicanos. […] Dado que a narrativa lealista já era de progresso nacionalista e perda protestante, a redução dos dias de hastear da bandeira enfureceu os lealistas, que viram nela, ao mesmo tempo, uma perda de poder e um ataque à sua identidade britânica. Dessa raiva nasceu a bruma encarnada, branca e azul que agora prevalece sobre as regras normais da sociedade e empurra para segundo plano quaisquer reflexões sobre melhores perspetivas económicas, mais emprego, liberdade de movimentos ou até segurança pessoal. Em vez disso, assistimos a um extenso surto de autodestruição.

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