Manifestação dos "sem abrigo" em Barcelona.

Espanha sem abrigo

Vítimas do desemprego, da bolha imobiliária e do crédito bancário demasiado facilitado, milhares de famílias são forçadas a abandonar as suas casas. Uma síndrome da crise que afeta o reino mas também de um sistema que é preciso reformar.

Publicado em 2 Dezembro 2011 às 16:34
Plataforma de Afectados por la Hipoteca  | Manifestação dos "sem abrigo" em Barcelona.

Não são mendigos, nem drogados, nem imigrantes sem papéis. O número de "sem abrigo" vai alastrando como uma mancha de óleo pelo mapa de Espanha. Perderam o emprego, a casa, os móveis, as ilusões e a esperança. Em troca, têm uma dívida colada aos calcanhares, que os acompanhará pelo resto da vida.

Por paradoxal que possa parecer, o pior não é ficar sem casa: é o que vem depois. "Condenaram-me, para o resto da vida, a não poder ter nenhuma propriedade em meu nome. Não vou poder receber um vencimento, nem ter um contrato de telefone, nem comprar um carro, nem pagar um aluguer, sob pena de embargo", lamenta-se Elena Parrondo, que se encontra ao lado do marido, no apartamento que estão prestes a perder, na localidade madrilena de Meco.

"Já não tinha dinheiro nem para comprar pão"

O único delito deste casal da classe média foi ter ficado no desemprego. O marido recebia um bom salário, na construção, mas, em novembro de 2010, foi despedido. Chegou o dia em que esta mulher, de 42 anos, passou a não ter com que alimentar os quatro filhos. Foi então que tomou uma dura decisão: deixar de pagar a hipoteca.

"No passado dia 11 de fevereiro, já não tinha dinheiro nem para comprar pão. Com os mil euros do fundo de desemprego, não conseguíamos suportar a hipoteca de 680 euros do apartamento. Pensámos muito e deixámos de pagar a prestação", explica, num tom formal. Tentou renegociar com o banco mas não foi possível. Desde então, vai vivendo sob a ameaça da ordem de despejo.

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"Não é nada agradável ser posta na rua com dois filhos menores. Se não pagamos a hipoteca, não é por capricho, mas porque não podemos. Os bancos deviam ter maior consciência da situação das famílias. Estão a ficar com milhares de casas, que permanecem vazias", insiste Elena.

Os membros da Plataforma de Afetados por la Hipoteca [PAH, grupo de protesto e defesa dos que não conseguem pagar as prestações] criticam o sistema, que está a condenar milhares de famílias à marginalidade e à exclusão social. "Houve uma gestão do risco imprudente por parte das entidades bancárias, que utilizaram uma sobreavaliação das habitações que dava ao devedor a ilusão de que o bem iria responder pela dívida", afirma Rafael Mayoral, assessor jurídico da PAH.

Quando se deixa de pagar a hipoteca, a habitação acaba por ir a leilão pelo valor que consta da escritura. Na maioria dos casos, ninguém aparece nesses leilões, porque o preço não pode descer abaixo de 79% do valor do bem hipotecado, no primeiro leilão, nem abaixo de 60%, quando é adjudicado pelo banco. Então, a entidade financeira fica com a habitação e a hipoteca é executada pelo remanescente da dívida.

Escravatura do devedor face à entidade financeira

Em vários casos, a dívida final do devedor é superior à inicial, apesar de o subscritor da hipoteca já não possuir a habitação: "Continuam a exigir-nos o pagamento, a nós e aos nossos fiadores, durante o resto dos nossos dias. A suposta solvência do sistema financeiro espanhol assenta na escravatura do devedor face à entidade financeira, visto que vamos responder com os nossos bens presentes e futuros até ao resto da vida", argumenta Mayoral.

Os bancos também não estão satisfeitos com a situação que foi criada, dado que o seu negócio não é ficar com ativos imobiliários. "Para um banco, a responsabilidade número um é cobrar créditos, porque esses montantes são concedidos com o dinheiro deixado por outros depositantes. Era difícil prever que as pessoas não iriam devolver os créditos", garante um porta-voz de uma entidade bancária.

Lino Samuel Moreno sentiu na pele o leilão da sua casa. A sua propriedade esfumou-se, tal como o seu sonho de viver em Espanha, o "Eldorado europeu". Este equatoriano nunca pensou que o seu anseio se transformaria num verdadeiro pesadelo. Aterrou no nosso país por alturas de 2002. Em 2006, já com os papéis em ordem, decidiu dar mais um passo e comprar uma casa na localidade madrilena de Valdemoro.

Tudo corria pelo melhor até que, em 2008, ficou sem emprego. Desde então, não tem conseguido trabalhar mais de quatro meses seguidos. Deixou de pagar uma primeira prestação, depois a segunda, depois a terceira… Tentou, em vão, renegociar a forma de pagamento mas, em 7 de outubro, recebeu a temida carta do tribunal, exigindo que desocupasse a casa. "Às 10 da manhã, apareceu a polícia a dizer-nos para sairmos. Abracei a minha mulher. Então, telefonaram-nos do banco, a dizer que nos tinham concedido uma prorrogação de três meses. Mas já não tínhamos os móveis", conta Lino, com a voz embargada. Agora, graças ao município, vive numa casa alugada em Valdemoro, pela qual paga 450 euros por mês.

Como estes, há milhares de casos. A PAH considera que se verifica uma situação de total impunidade e exige que sejam investigados os métodos de angariação e contratação de hipotecas, que, em seu entender, terão rondado a extorsão, em alguns casos. "Os empréstimos hipotecários funcionaram como alavanca para o aumento artificial do preço do bem de primeira necessidade que é a habitação. Há pessoas responsáveis por isso. Deve haver uma reparação para as vítimas e não o contrário. Pedimos a alteração da legislação sobre hipotecas, de modo a incluir o direito à entrega do bem em troca da dívida e prevendo que esta seja cancelada de uma vez por todas", explica Rafael Mayoral.

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