Reportage Indústria do papel
Plantações de eucaliptos no distrito de Gondôla, Manica, Moçambique Foto: ©Juan Maza Calleja Voxeurop-PaperIndustry_Mozambique_Plantations_Gondola

Terra e papel: a indústria europeia da celulose em Moçambique

Empresas europeias cultivam eucaliptos em Moçambique, para depois os transformarem em celulose na Europa. A que custo? O colapso das comunidades rurais e dos ecossistemas locais.

Publicado em 11 Dezembro 2024
Voxeurop-PaperIndustry_Mozambique_Plantations_Gondola Plantações de eucaliptos no distrito de Gondôla, Manica, Moçambique Foto: ©Juan Maza Calleja

Enquanto Gabriel Feijão transfere o mel para uma garrafa de plástico com a ajuda da filha, a sua esposa prepara pães recém-assados num forno tradicional alimentado por carvão. O carvão é produzido por outro dos seus filhos, a algumas centenas de metros de distância, usando troncos recolhidos na sua terra.

Carvão, mel, pão e legumes são o que a família produz para si mesma, mas também, em grande parte, para vender no mercado local. Trata-se de uma agricultura de subsistência amplamente praticada numa zona rural, no distrito de Sussundenga, na província de Manica, centro de Moçambique.

 The Feijão family, who refused to give up their land for eucalyptus cultivation, grows several varieties of grains and vegetables, in addition to producing honey and selling it at the local market. | Photo: Davide Mancini
A família Feijão, que se recusou a ceder as suas terras para o cultivo do eucalipto, cultiva diversas variedades de cereais e legumes, além de produzir mel e vendê-lo no mercado local. | Foto : ©Davide Mancini

A vasta paisagem de savana e arbustos é interrompida apenas por montanhas graníticas e manchas de floresta que, vistas de perto, têm formas geometricamente definidas: são plantações de eucaliptos.

“Disseram-nos que queriam produzir papel, construir uma fábrica e muitas outras coisas. Mas a fábrica está em Portugal. Então, o benefício é para eles lá, não para nós aqui. Nós queremos comida para podermos comer. Se nos tirarem a terra, onde vamos produzir nossos alimentos?”.

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Gabriel Feijão não é o único indignado na comunidade rural de Cortina-de-Ferro, situada a pelo menos dois dias de carro da capital, Maputo. Ali, nos últimos 15 anos, uma empresa portuguesa obteve direitos de uso da terra para plantar eucaliptos, uma árvore destinada exclusivamente à produção industrial de celulose, matéria-prima para fabricar papel e papelão.

No entanto, em Moçambique, por enquanto, não se produz celulose. Desde essa região, os troncos são enviados para o porto da Beira e, de lá, embarcados para Aveiro, em Portugal, onde são transformados na matéria-prima necessária para fabricar caixas, papel de alta qualidade e inúmeros tipos de embalagens: desde copos de papel para café até caixas gráficas de produtos electrónicos fabricados e consumidos na Europa.

A companhia portuguesa Navigator Company é a accionista maioritária da empresa Portucel Moçambique, enquanto os restantes 20% pertencem à IFC, International Finance Corporation (ramo financeiro do Banco Mundial).

Aerial view of one of Navigator Company's processing plants in Aveiro, Portugal, where the first shipments of eucalyptus grown in Manica, Mozambique, by the subsidiary company Portucel Mozambique, have arrived. | Photo: ©Juan Maza Calleja
Vista aérea de uma das fábricas de transformação da Navigator Company em Aveiro, Portugal, onde chegaram os primeiros carregamentos de eucalipto cultivado em Manica, Moçambique, pela subsidiária Portucel Moçambique. | Foto : ©Juan Maza Calleja

A Portucel Moçambique obteve os direitos de uso e aproveitamento da terra (DUAT) por um período de 50 anos sobre terras agrícolas de 356.000 hectares nas zonas interiores da ex-colónia portuguesa. A Navigator Company é a terceira maior exportadora de Portugal, com um volume de negócios anual de quase 2 mil milhões de euros, contribuindo com cerca de 1% do PIB do país.

Como em Moçambique a terra é predominantemente de propriedade estatal, a empresa teve de negociar o uso da terra com o governo moçambicano em 2011. Em vez de uma expropriação da terra, que forçaria milhares de famílias a deslocarem-se, optou-se por uma cessão voluntária do uso da terra por parte dos residentes, com um contrato assinado entre as famílias e a empresa.

No entanto, muitas pessoas entrevistadas acusam a empresa e o governo de não cumprirem as promessas constantes no contrato e de falta de transparência em geral, encontrando-se agora sem terra e sem a entrada económica prevista.

Gabriel Feijão recusou-se a ceder a sua terra, mas acredita que é apenas uma questão de tempo até que cheguem à sua machamba — como são chamadas em Moçambique as parcelas de cultivo misto familiar, um sistema tradicional em grande parte agroflorestal.

Dos 236.000 hectares destinados às plantações de eucalipto da empresa portuguesa em Moçambique, apenas 14.000 foram plantados até ao momento. Segundo a empresa, o investimento ainda está na fase piloto: trata-se do maior investimento estrangeiro em área agrícola para o país africano desde a sua independência, o que equivale a cerca de 2,5 mil milhões de dólares, num país cujo PIB em 2023 foi de 20,6 mil milhões.

Trabalho por terras

Com uma extensão territorial 9 vezes maior do que a de Portugal, o modelo “mosaico” escolhido pela empresa prevê plantar perto das comunidades rurais, muitas vezes dispersas e desconectadas, onde as pessoas se deslocam principalmente a pé, alternando faixas de plantações, machambas e habitações, principalmente palhotas construídas com materiais locais.

“Agora temos de caminhar quilómetros para chegar ao poço, porque o poço que usávamos antes secou, e o outro já não é potável”, diz Augusto Mugabe, em outra comunidade. Mugabe, por sua vez, cedeu os seus 1,7 hectares de machamba com um contrato de cessão voluntária, e agora o que era a sua terra está coberto por altos eucaliptos que ele próprio ajudou a plantar.

Mugabe, como muitas outras pessoas, diz que a empresa havia prometido trabalho por 50 anos para aqueles que cedessem o uso da terra: no entanto, a manutenção das plantações não requer muita mão de obra, o que levou, com o tempo, a tensões entre aqueles que esperavam uma melhoria na qualidade de vida e a Portucel.

Mugabe Augusto inside the eucalyptus plantation that was once the land he farmed.  | Photo: Davide Mancini
Augusto Mugabe no interior da plantação de eucaliptos que outrora foi a sua terra de cultivo | Foto: ©Davide Mancini

Para Mugabe, o pagamento de 236 meticais por dia de trabalho (cerca de 3,40 euros) não compensa a perda da terra, da qual ele e sua família podiam tirar benefícios quando plantavam hortaliças. Por sua vez, a Portucel responde que, durante os mais de 10 anos de presença na região, criou 250 postos de trabalho permanentes, além de diversos contratos de trabalho precário ou sazonal equivalentes a 1.500 empregos a tempo inteiro.

Mas tudo avança gradualmente, e apenas 2.000 hectares foram plantados até agora na província de Manica, uma pequena parte do que estava previsto no projecto aprovado. A empresa compromete-se a contratar mão de obra principalmente entre as pessoas que cederam a terra ou que fazem parte da comunidade, caso seja necessário.

A pesquisadora do College of Agriculture and Life Science da Cornell University, Natacha Bruna, conduziu várias pesquisas sobre o impacto da Portucel na vizinha província de Zambézia para o OMR (Observatório do Meio Rural), e segundo suas análises, apenas 17% dos entrevistados conseguiram um emprego permanente, sendo que a maioria das pessoas foi empregada apenas para preparar a terra para as plantações de eucalipto, sem continuidade no emprego, como esperado pelos residentes.

O resultado, segundo Bruna, é um desastre social: “Vieram com o melhor dos discursos propondo boas práticas, mas o que vemos é um aumento da pobreza localizada onde surgiram as plantações.” Segundo Bruna, algumas elites locais nas comunidades se beneficiaram com os empregos obtidos em troca da terra, ou seja, aqueles que tinham terra em abundância para ceder e ainda conservar uma parte, mas muitos pequenos produtores foram convencidos pelos líderes locais, ou simplesmente foi comunicado a eles a chegada das plantações.

Sergio Baffoni, coordenador de campanhas da Environmental Paper Network, acompanhou o caso Portucel Moçambique e outras operações ligadas ao mercado internacional de celulose: “A demanda por papel está em constante aumento na Europa. Nos últimos 20 anos, o consumo de celulose aumentou 22%, e o abastecimento das florestas europeias aumentou 9%. A diferença foi compensada pelas importações de países como Brasil, Uruguai e Chile.”

Moçambique é um novo actor no mercado global de celulose, e a Navigator Company afirma que, na realidade, o eucalipto moçambicano destina-se a ser exportado para o mercado asiático, como a China, que tem uma grande demanda por celulose para produzir papel e outros derivados, tanto para consumo interno quanto para exportações para o chamado “Norte Global”.

A construção da fábrica de celulose prevista pela Portucel em Moçambique foi, por enquanto, adiada para 2032, aguardando a ampliação do porto de Macuse, de onde a empresa estima que serão enviadas anualmente 1,5 milhão de toneladas de celulose.

Da Austrália à Portugal

Enquanto isso, o eucalipto, uma planta originária da Austrália, tornou-se a espécie dominante nas florestas de Portugal, o maior produtor europeu de celulose de eucalipto. A partir dos anos 80, com a independência das ex-colónias portuguesas como Angola e Moçambique, a forte indústria pública e privada da celulose impulsionou a florestação de eucalipto dentro do seu território, atraindo muitos pequenos proprietários portugueses a plantar essa espécie, que na época parecia oferecer perspectivas económicas promissoras em troca de uma manutenção mínima das plantações.

Desde os anos 80 até hoje, muitas dessas áreas, especialmente no centro-norte do país, foram abandonadas sem gestão, devido ao despovoamento das áreas interiores e à baixa rentabilidade. As plantas australianas tomaram cada vez mais espaço, até ocupar 845.000 hectares, 26% da área florestal nacional, tornando-se a espécie predominante em Portugal.

Com a tragédia de Pedrógão Grande, o incêndio que traumatizou Portugal em 2017, causando 66 vítimas e queimando 53.000 hectares (metade dos quais eucalipto), o governo português decidiu travarr a expansão do eucalipto e procurar formas de gestão mais eficientes para essa espécie, que, se deixada sem controle, torna-se uma bomba-relógio para incêndios.

A load of eucalyptus on the main road that connects the province of Manica with the port city of Beira, where the timber is piled up waiting to be sent by ship to Portugal. | Photo: ©Juan Maza Calleja
Um carregamento de eucalipto na estrada principal entre a província de Manica e a cidade portuária da Beira, onde a madeira é empilhada para aguardar o embarque por barco para Portugal. | Foto: ©Juan Maza Calleja

Mugabe mostra o poço onde antigamente ele ia buscar água para sua machamba, agora cercado por fileiras de eucaliptos com mais de 15 metros de altura. “Desde que plantaram aqui, esse poço e outros na área secaram, porque o eucalipto absorve muita água no solo.” Mugabe, como outros vizinhos, conta que logo após plantarem os eucaliptos, e com a chegada da estação das chuvas, várias pessoas na região começaram a ter problemas estomacais, e acreditam que seja devido às substâncias químicas usadas nas plantações.

A empresa utiliza um inseticida, o thiamethoxam, aplicando-o nas raízes da planta durante o primeiro ano e meio de vida, para evitar que certos insectos possam comprometer seu crescimento. O uso ao ar livre dessa substância química é proibido em toda a União Europeia desde 2018, sendo considerada “moderadamente perigosa para os seres humanos” pela FAO. Na Europa, o uso foi proibido principalmente porque afecta indiscriminadamente insectos polinizadores como as abelhas, fundamentais para a biodiversidade.

A empresa responde, numa troca de e-mails com os jornalistas, que em mais de 10 anos de experiência não registrou nenhum secamento de poços e não acredita que as monoculturas de eucalipto tenham impacto na disponibilidade de água no subsolo. Quanto ao uso de pesticidas, a Portucel afirma que analisa as águas dos rios e córregos próximos às plantações duas vezes por ano para verificar a presença de pesticidas, e até o momento não houve nenhuma detecção. Além disso, diz a Portucel, o uso de químicos como o thiamethoxam está em conformidade com a legislação moçambicana e segue as recomendações da IFC e os planos internacionais de certificação, excluindo que as plantações tenham impacto sobre a qualidade da água nas comunidades.

“Cada árvore de eucalipto consome entre 30 e 60 litros de água por dia”, afirma Sergio Baffoni, baseando-se em vários estudos internacionais. “Multiplique isso agora por milhões de árvores. E tudo isso para nos encher de lixo na Europa”, diz, referindo-se ao fato de que, na Europa, as embalagens consomem 50% do papel e 40% do plástico, representando um terço dos resíduos gerados a nível municipal. “Acreditamos que consumir menos equivale a uma vida difícil e triste. Mas não será mais triste comer num prato descartável de papel do que num de cerâmica reutilizável?”, conclui Baffoni, refletindo sobre a substituição do uso de materiais descartáveis originários do petróleo por derivados da celulose, causada indiretamente pela Diretiva Europeia sobre Embalagens, fortemente influenciada pelas lobbies dessa indústria para impedir que se incentive o “reuso” de embalagens em detrimento do “descartável”. Uma transição que inevitavelmente envolve importar matérias-primas de outros continentes para satisfazer a demanda de consumo.

🤝Este artigo foi apoiado pelo Journalismfund Europe. É publicado como parte do projeto colaborativo Come Together.
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