Toda esta história em torno do monumento ao exército soviético [ver infra] mostra bem quem nos governa. Não quem se encontra agora no poder, mas a mentalidade que faz com que a Bulgária não mude. E quando finalmente acontece qualquer coisa, o monumento é lavado às 3 da manhã. Os pintores anónimos não se limitaram a pintar as personagens pardas do monumento, mas pintaram também o rosto pardo do poder.
Vezhdi Rashidov [ministro da Cultura e célebre escultor] qualificou de "vandalismo" a transformação dos soldados soviéticos em heróis da cultura pop norte-americana. Evidentemente, para o ministro, a arte reduz-se a uns bocados de bronze à mostra no hall da sede de uma empresa, ou a uns quadros modestamente pendurados nos gabinetes dos bancos. A arte contemporânea deveria ser como a arte clássica, mas feita por artistas contemporâneos. Uma "espiritualidade" escondida e protegida numa caixa-forte, ou numa galeria de arte.
Sim, a arte talvez não tenha valor quando os artistas são anónimos e não são pagos pelo seu trabalho e ainda receberam uma ameaça de 2 anos de prisão, se forem apanhados.
O Ministério Público mostra que já regulou, de uma vez por todas, os problemas do crime organizado e não organizado, do tráfico de pessoas e dos contrabandistas do país. Resultado, autoembargou-se imediatamente e abriu um "inquérito ao vandalismo cometido por autores anónimos".
Novos hábitos da história
Para a casta político-corporativista de hoje, a arte é uma mercadoria […] E o pior é quando um elemento provocador afasta as ideias feitas. Neste caso, não se trata de arte, mas de vandalismo. Sobretudo quando se trata de memória e de História.
A transformação do baixo-relevo é um "atentado à memória histórica", diz-se. Mas a memória histórica não é uma coisa imutável, que seja dada de uma vez por todas e que tenha de ser protegida dos "vândalos". A simbologia do monumento muda e esse símbolo foi e será sempre objeto de discussão.
Os monumentos são uma tentativa de ocultar o antagonismo das diferentes personagens históricas atrás do bronze ou do granito. Mas é impossível fugir à guerra pelo passado. Sobretudo quando se trata do exército soviético e do seu monumento. É por isso lógico que se chegue à sua transformação visual. O que surpeende, neste caso, é a inteligência e a subtileza artística da obra.
Pintar um soldado soviético de Batman é um sacrilégio. Há um "atentado à memória histórica" se a reescrita da História se produzir de uma forma desorganizada, sem aprovação do partido e do Estado. Foi o que aconteceu.
Mas um monumento simboliza outra coisa para além do acontecimento que comemora. É uma representação forte do poder que o constrói e é preciso esperar centenas de anos até se poder apagar esse símbolo. O poder, em todas as épocas, amou símbolos, uniformes, fausto e monumentos. Porque inspiram submissão.
Os monumentos têm de fazer lembrar constantemente quem tem o poder de impor a memória "oficial" do passado. É precisamente isso que, hoje em dia, Boïko Borissov faz nos meios de comunicação social. Com a sua presença física na televisão, o primeiro ministro autodesigna-se constantemente a autoridade. Como um monumento de si mesmo. É por isso que os caricaturistas e os comediantes não param de o "pintar" de Don Corleone, líder comunista, Batman…
Limpar o "vandalismo"
De facto, a reação dos dirigentes do GERB [partido no poder] a esta situação revelou-se profundamente cómica. Os seus reflexos identificam-nos como sendo "o Estado" e "a História", entendidos aqui como valores indiscutíveis e monolíticos. Ao mesmo tempo, percebem que são o emblema de um regime comunista.
Lavaram tudo. Não estamos na República Checa, onde o tanque rosa de David Černý continua a ser rosa [pintado em abril de 1991, o tanque que celebra o Exército Vermelho na praça de Praga foi retirado depois da partida dos soviéticos está agora exposto no Museu técnico militar de Lešany], mas uma réplica. Apesar da lavagem, o monumento nunca mais será o mesmo – ficam as fotografias e a recordação.
Este monumento pintado de novo é um dos raros exemplos que mostram uma maneira de abordar o passado que não seja simplesmente cheia de reverência, ou de negação, mas também com muita piada e como autobrincadeira. É isso a arte moderna, a arte que joga com o contexto, que é produzida na rua e que não está isolada nas galerias de arte, ou no gabinete do chefe.
A transformação das esculturas em heróis de BD fez com que toda a gente sentisse que os "vencedores" de bronze fazem parte de uma cultura de massas que não agrange os milhões de soldados mortos, mas o poder do "socialismo triunfante".
"Os autores anónimos" perseguidos pelo Ministério Público representam a esperança de que a nossa sociedade vá mudando aos poucos. E o poder? O poder continua a ser o mesmo.
Contexto
Um acontecimento colorido
Na manhã de 18 de junho, os habitantes de Sofia descobrem que, durante a noite, os soldados do monumento ao exército soviético, no centro da cidade, foram pintados de Batman, SuperHomem, Pai Natal, entre outros. Três dias depois, o monumento é lavado durante a noite pelas autoridades e os autores, anónimos, procurados.
O monumento ao exército soviético foi erigido em 1954 pelo Partido Comunista da Bulgária para simbolizar o reconhecimento do povo búlgaro, salvo do nazismo pelo Exército Vermelho. Desde 1993, com a queda do regime comunista, há inúmeros debates sobre a localização e o significado do monumento. Continua a haver outros símbolos da ex-URSS nas grandes cidades búlgaras.