Bom-dia e boas-vindas ao século XIX! A partir de hoje, primeiro dia da cimeira "histórica" da NATO em Lisboa, estamos noutra realidade e noutra época geopolítica. A cimeira é "histórica", mas por razões diferentes das evocadas pelos oficiais da NATO e pelos dirigentes políticos.
Não se trata da inauguração de uma nova Aliança, mais eficaz, mais flexível – como está escrito nos documentos de promoção do acontecimento –, mas do reconhecimento oficial do desaparecimento do “Ocidente" como conceito estratégico e militar, e da transformação da NATO num clube político UE-Rússia, com a participação supletiva dos Estados Unidos.
O Afesganistão cavou o fosso entre os EUA e os seus aliados
De certo modo, era inevitável. O desaparecimento da União Soviética, o inimigo da Guerra Fria, fez da NATO uma vítima do seu próprio sucesso. As guerras dos Balcãs revelaram a fraqueza militar da Europa, e a guerra no Afeganistão cavou o fosso entre os Estados Unidos e os seus aliados europeus.
A impotência destes últimos em dar uma contribuição significativa para a vitória contra os talibãs e ulterior estabilização do país, bem como o facto de certos aliados se manifestarem incapazes de se comprometer na batalha, enquanto outros sofriam a maior parte das perdas, contribuíram para a desintegração da Aliança.
Alguns comentadores veem uma ironia da história no facto de a NATO morrer no mesmo lugar que a União Soviética: no Afeganistão. Mas o Iraque constituiu o primeiro verdadeiro momento de crise no seio do Ocidente.
Regresso às esferas de influência do século XIX
E temos ainda o "problema" da Rússia. A chegada ao Kremlin de Vladimir Putin e da sua equipa de antigos oficiais do KGB destruiu os fracos progressos em termos de democracia e de Estado de Direito do tempo de Ieltsine. Os países ocidentais fecharam os olhos aos abusos e ao encerramento da sociedade russa, em troca de acesso ao gás natural e às matérias-primas baratas.
O resultado traduziu-se numa rutura ainda mais forte entre os Aliados que se encontraram na cimeira de Bucareste [em 2008]. Ali, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy defenderam de corpo e alma o “statu quo”, rejeitando o Plano de Ação para a Adesão (MAP) da Ucrânia e da Geórgia, reconhecendo implicitamente o direito de veto de Moscovo nos assuntos da NATO. Como consequência, a Geórgia foi invadida alguns meses depois e regressámos de facto à política das esferas de influência do século XIX, ao "concerto europeu" que foi asfixiado no massacre da Primeira Guerra mundial.
Esta nova ordem vai ser oficializada amanhã, com o convite feito à Rússia para se juntar ao escudo antimíssil. Um estudo publicado recentemente pelo centro de investigação European Council on Foreign Relations fala já de uma nova arquitetura de segurança europeia, realizada em torno de um diálogo trilateral UE-Rússia-Turquia. A NATO não entra na equação.
Merkel fez promessas sem consultar os seus parceiros
Mas UE não é realmente sinónimo de Europa dos Vinte e Sete. Angela Merkel fez promessas a Medvedev sobre política europeia sem consultar os seus parceiros. E não deixa de ter uma importância simbólica que o Presidente russo tenha começado por declinar o convite do secretário-geral da NATO para estar em Lisboa, antes de aceitar o do par Sarkozy-Merkel.
Claro que os norte-americanos não vão desaparecer da região, porque têm de defender os seus interesses no Médio Oriente e tratar do escudo antimíssil. Apesar de a Administração Obama ter feito tábua rasa do passado e de a Casa Branca estar disposta a dar à Rússia a presunção de inocência, o reforço da aliança com os Estados Unidos permanece a melhor opção de segurança perante o eixo Paris-Berlim-Moscovo.
Seria uma ironia da história que, depois de nos termos desembaraçado das tropas russas do tempo do comunismo, os militares russos regressassem agora a território romeno como "conselheiros" para a instalação do escudo em que estão convidados a participar.
Cooperação
Defesa europeia continua adiada
Na cimeira da NATO que se realiza em Lisboa a 19 e 20 de novembro, Barack Obama pode ser chamado a intervir como mediador no conflito entre Merkel e Sarkozy, anuncia o jornal i. O diário português explica que a dissuasão nuclear é um tema de desacordo entre os dois líderes, porque a Alemanha considera que a NATO deve dar o exemplo em matéria de desarmamento, enquanto a França pensa que a energia nuclear é essencial para o futuro da Europa. Este ponto de desacordo é um dos que pode enfraquecer a conceção de uma defesa europeia. Porque “da cimeira franco-britânica de Londres à cimeira Atlântica de Lisboa, a política de defesa francesa parece, em quinze dias, abdicar de qualquer ambição europeia”, escreve no Monde o professor de Ciência Política Louis Gautier. Munido de um acordo de cooperação militar assinado com Londres, em 2 de novembro, Paris “volta as costas à Europa da defesa”. “Confrontados com dificuldades recorrentes de financiamentos dos seus exércitos, a França e o Reino Unido preferem aproximar-se, na esperança, um pouco vã, de prolongar a sua liderança militar na Europa”. Mas o seu acordo “é pensado ao arrepio do espírito europeu”, dado que “afasta a França da Alemanha, nosso parceiro (incluindo em matéria de armamento), no momento em que este país começa uma reforma profunda do seu dispositivo de defesa”, lamenta o investigador, numa referência ao projeto alemão de instaurar a profissionalização das Forças Armadas.