Notícias Negociações sobre o programa nuclear iraniano
Alta Representante para os Negócios Estrangeiros Catherine Ashton e o ministro iraquiano dos Negócios Estrangeiros Mohammed Javad Zarif.

O triunfo de Lady Ashton em Genebra

O acordo sobre o programa nuclear iraniano, assinado na noite de 23 para 24 de novembro, é fruto de uma maratona diplomática discretamente realizada pela Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros. Uma consagração para uma figura que, durante muito tempo, foi menosprezada pela sua falta de carisma e de peso.

Publicado em 25 Novembro 2013 às 17:12
Alta Representante para os Negócios Estrangeiros Catherine Ashton e o ministro iraquiano dos Negócios Estrangeiros Mohammed Javad Zarif.

Quando, em finais de 2009, meteu mãos à árdua tarefa de pôr de pé a primeira máquina diplomática da União Europeia, a membro da Câmara dos Lordes trabalhista Catherine Ashton foi alvo de algumas gargalhadas de escárnio.

“Lady Qui?”, perguntavam com altivez, em Paris. Em Berlim, queixavam-se de que a Alemanha não estava a ter a atenção que merecia. Além disso, ninguém da sua equipa falava alemão. Em Londres, a atitude era: “O Reino Unido não quer uma política externa europeia e nunca produzirá uma tal política. Portanto, tudo bem.”

Por entre este clima de desdém, desapontamento e surpresa, um alto funcionário da UE que viria a desempenhar um papel central na sua diplomacia, expressou uma opinião divergente: “Dentro de quatro anos, [Catherine] Ashton será uma figura proeminente.”

Na madrugada de domingo em Genebra, essa declaração de novembro de 2009, cerca de quatro anos antes, quase assumiu o caráter de profecia. A antiga ativista da Campanha para o Desarmamento Nuclear tinha conseguido aquilo que parece ser o maior passo de toda uma era no sentido de pôr fim à escalada nuclear, o progresso diplomático da década relativamente a um problema e uma discórdia tão delicados que poderiam ter levado a uma guerra devastadora em todo o Médio Oriente e não só.

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A acalmia parcial mas significativa no que se refere à questão do programa nuclear iraniano deve-se sem dúvida, essencialmente, à mudança de regime em Teerão, este verão, e à decisão da Administração Obama de abordar com seriedade o diálogo com o Irão, pela primeira vez numa geração.

Figuras apagadas

Mas a persistência de Catherine Ashton na promoção de negociações intermitentes que se arrastaram por anos –, feito que, em Bruxelas, é atribuído à “inteligência emocional” que demonstrou na condução e mediação de conversações altamente complexas, teve excelentes resultados. [[No domingo 24 de novembro, Catherine Ashton viu-se na posição inusitada de receber uma chuva de cumprimentos]] do seu chefe, José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, de Herman Van Rompuy, que preside às cimeiras de dirigentes nacionais, e do secretário de Estado norte-americano, John Kerry.

Van Rompuy e Catherine Ashton assumiram os respetivos postos na mesma altura, em resultado do Tratado de Lisboa, que criou os cargos de presidente do Conselho Europeu e de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança.

Os dois eram figuras apagadas, aparentemente pouco indicadas para posições de liderança, com fraca visão estratégica e fraca formação política. O que era precisamente aquilo que os principais dirigentes da Europa queriam. Não queriam um Tony Blair ou um David Miliband, nem um político alemão ou francês dinâmico a pavonear-se no palco internacional, decidindo qual seria a agenda política e fazendo-lhes sombra.

Optaram por, e encontraram, duas pessoas calmas, metódicas e eficazes na mediação de problemas, para enfrentarem algumas das grandes questões da época. A Van Rompuy coube lidar com os conflituosos dirigentes nacionais no que se referia às mais graves dificuldades que a UE alguma vez vivera – o euro, a dívida soberana e o caos financeiro.

Catherine Ashton teve que construir, a partir do zero, o serviço diplomático da UE, de criar a primeira nova instituição da UE da última década, num clima marcado por algumas das lutas internas mais brutais, em Bruxelas e entre Bruxelas e os 28 Estados-membros.

Muitas das críticas que lhe foram feitas refletiam um sexismo velado e isso doeu. Catherine Ashton refugiou-se num “workaholismo” com fraca visibilidade, cruzando o mundo, evitando os jornalistas, construindo, de uma forma persistente e lenta, relações pessoais com atores internacionais, como os iranianos, Hillary Clinton e o seu homólogo chinês. Nos Balcãs, deu início a relações diplomáticas altamente personalizadas com os primeiros-ministros da Sérvia e do Kosovo, o que também originou um avanço, que apesar de quase ter passado despercebido, foi importante.

Empenho contínuo

Há algumas semanas, os sérvios, que se recusam a reconhecer o separatista Kosovo independente, participaram, pela primeira vez, nas eleições locais no Kosovo, aceitando assim tacitamente, ainda que de má vontade, a legitimidade do Governo do Kosovo.

É quase certo que isso não teria acontecido, sem o empenho contínuo de Catherine Ashton, que foi mediadora entre os dois lados, em dúzias de reuniões e jantares.

Referindo-se à intervenção de Catherine Ashton nas negociações com o Irão, um antigo funcionário superior da UE comentou: “É possível conseguir muita coisa, se deixarmos os outros ficarem com os louros.”

Os Balcãs exigiram uma tática diferente: “[[Um caso em que ela merece um enorme reconhecimento é o da Sérvia/Kosovo, no qual o seu contributo pessoal não pode ser subestimado]].”

Contudo, em contrapartida, a política externa da UE sofreu um duro golpe na semana passada, quando o Presidente Viktor Yanukovych, da Ucrânia, renunciou abruptamente a um acordo estratégico com a Europa, que deveria ser selado com Catherine Ashton, no decorrer da cimeira da UE desta semana, na Lituânia.

Em Genebra, durante o fim de semana e há quinze dias, o sistema consistiu numa série vertiginosa de “bilaterais”, reuniões separadas dos iranianos com cada um dos seis outros países, além de inúmeros encontros entre as várias combinações a dois desses seis países. Só depois se realizou a indispensável sessão plenária, com a presença de todos.

Diplomacia multidimensional

Nesta complexa diplomacia multidimensional, a única pessoa presente que tinha quase sempre uma visão global de tudo foi Catherine Ashton. Couberam-lhe as tarefas de resumir, convencer, limar diferenças, transmitir mensagens de um lado para o outro.

Boa parte do trabalho de preparação, em negociações anteriores, foi feita pelo, agora na reforma, diplomata britânico e estratega da política externa da UE, Robert Cooper. Neste momento, esse papel é desempenhado por Helga Schmidt, a diplomata europeia alemã que em tempos chefiou o gabinete do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão e líder dos Verdes, Joschka Fischer.

[[Os progressos alcançados no fim de semana constituem apenas a primeira etapa]], com a duração de seis meses, no sentido de uma resolução “abrangente” para o diferendo com o Irão. Não é certo que isso possa ser conseguido dentro dos onze meses que restam a Catherine Ashton no desempenho do cargo. Mas grande parte dos louros pertence-lhe desde já, por ter agido dentro dos limites do possível e aberto caminho para um acordo que foi um desafio para todas as partes, durante mais de uma década, depois de as notícias sobre a existência de um programa nuclear clandestino do Irão, com 20 anos, terem explodido, em 2002.

Na Europa, há uma fila de candidatos, sobretudo homens, à sucessão de Catherine Ashton – Radek Sikorski, em Varsóvia, Carl Bildt, em Estocolmo, e, no fim de semana, falou-se do ministro dos Negócios Estrangeiros holandês, Frans Timmermans.

Catherine Ashton, então com uma experiência nula em política externa e que nunca fora eleita para quaisquer funções, só soube que iria ocupar o cargo e tornar-se o diplomata mais bem pago do Ocidente, dois dias antes de ser nomeada, em 2009. Ficou surpreendia. Em Genebra, este fim de semana, foi a sua vez de surpreender.

Reações

“Um crédito para uma diplomacia europeia comum”

Na noite de 23 para 24 de novembro, após cinco dias de discussões (e dez anos de negociações), os “5+1” negociadores internacionais (Estados Unidos, China, Rússia, Grã-Bretanha, França e Alemanha) chegaram a um acordo, em Genebra, sobre o programa nuclear iraniano que deverá limitar a capacidade de Teerão ao uso civil.

“O sucesso de Genebra também se deve à diplomacia comum europeia”, escreve o Slate.fr, segundo o qual “tendo em conta que os Estados Unidos não têm relações com Teerão e que se mostraram céticos em relação à utilidade desta iniciativa, a Europa acabou na linha da frente”, enquanto “líder dos ‘5+1’ negociadores internacionais”. Uma liderança representada pela chefe da diplomacia da UE, Catherine Ashton, homenageada pelo Foreign Policy, que considera que “o principal vencedor” da maratona diplomática de Genebra “é muito provavelmente uma diplomata britânica discreta que evita a imprensa e que foi durante muito tempo descrita como um peso ligeiro”:

Passou os últimos dias fechada em negociações intermináveis com o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Jawad Zarif. […] Os ministros dos Negócios Estrangeiros do “5+1” reuniram-se brevemente com Zarif neste fim de semana, mas Ashton liderou as discussões e foi o seu principal interlocutor.

“O acordo histórico com o novo Governo iraniano é o principal sucesso da trajetória de Ashton na liderança da política externa europeia”, reconhece por sua vez El País, segundo o qual,

a seis meses das eleições europeias, a paz com o Irão proporciona à Alta Representante da União Europeia o sucesso que precisava para concluir o seu mandato. […] O episódio de Genebra mudará, sem dúvida alguma, a fraca opinião de que beneficiou até à data.

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