Nuremberga, a tribuna do Zeppelinfeld, a partir de onde Hitler fazia os seus discursos, fotografada nos nossos dias.

Renascer sem renegar o passado sombrio

Como carregar um fardo pesado como ser símbolo do nazismo ou da colaboração? Nuremberga e Vichy tentam cada uma à sua maneira de fazer esquecer o seu passado sulfuroso.

Publicado em 25 Agosto 2010 às 13:15
Nuremberga, a tribuna do Zeppelinfeld, a partir de onde Hitler fazia os seus discursos, fotografada nos nossos dias.

Em muito poucos lugares da Alemanha se pode apreciar a estética e a ideologia nacional-socialista como no recinto onde, entre 1933 e 1938 se realizaram os congressos do Partido Nazi, a sul da cidade de Nuremberga, a mesma que, a partir de 1945 acolheu o Tribunal que ficaria conhecido com o seu nome. O complexo ficou inacabado, por causa da guerra, e os edifícios que sobreviveram aos bombardeamentos e às demolições foram declarados, em 1973, património nacional, como exemplos típicos da arquitectura colossal do regime.

Apesar das reparações pontuais das últimas décadas, algumas das construções ameaçam ruir. Como explica Siegfried Zelnhefer, porta-voz da Câmara de Nuremberga, os estragos afectam a estrutura, e as primeiras estimativas sobre a intervenção necessária aponta para 10 anos de obras e um custo de 70 milhões de euros. Recuperar ou não, eis a questão. Justifica-se investir para manter estes símbolos? Enquanto há quem veja perigo e contradições, muitos historiadores sublinham o seu valor como fontes documentais únicas.

"Responsabilidade histórica"

“Estas construções descrevem as pretensões de domínio do regime criminoso nazi, que levaram a uma guerra mundial com 55 milhões de vítimas e narram, também, a loucura racista, que conduziu ao assassinato de seis milhões de judeus”. Apesar dos seus cerca de mil anos de história, com luzes e sombras, “desde há mais de meio século o nome de Nuremberga está associado, muito mais do que o de outras cidades alemãs, à época do nacional-socialismo e dos seus crimes – reconhece Zelnhefer –, ainda que esse passado não atinja unicamente Nuremberga, a cidade entende que o seu papel, durante a ditadura nazi, implica, hoje, uma responsabilidade histórica”.

Assim, a cidade está especialmente empenhada em ter um papel activo na manutenção da paz e na defesa dos Direitos humanos, através da organização de múltiplas actividades e do apoio a iniciativas. A mais recente de todas, ainda em fase muito inicial, está relacionada com outro dos espaços emblemáticos da cidade: a sala de audiências 600, sede dos Processos de Nuremberga, que recebe cerca de 40 mil visitas anuais e que, a partir do próximo Outono contará com um museu comemorativo. Trata-se do projecto de candidatura para que a sala 600 seja declarada, pela Unesco, património da Humanidade, pelo seu carácter de berço do direito penal internacional. “Neste local escreveu-se história – lembra Zelnhefer-, pela primeira vez, Estados com formas de Governo e legislações diferentes sentaram-se num tribunal perante um inimigo comum”.

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"Vichy não é só Pétain"

A cidade projecta a sua riqueza cultural e turística perante a recordação de ter sido a capital da França colaboracionista.

Em frente ao número 3 da praça Joseph Aletti, na cidade francesa de Vichy, a cerca de 400 quilómetros de Paris, um casal de turistas madrilenos começa as suas férias. Francisco e Sofía têm grandes expectativas: “Escolhemos esta cidade para desfrutarmos das suas famosas águas termais”. Os dois turistas espanhóis irão descobrindo que cada recanto está marcado pelo peso de uma história negra, para a maioria dos franceses, e inevitável, para outros, num país que tenta mas não consegue esquecê-la. A cidade está apostada em avançar sem perder a memória. A aristocrática Vichy foi, entre 1940 e 1944, a capital do Estado francês, sob a liderança do Marechal Philippe Pétain, controlado pelos oficiais nazis. A França livre ficou nas mãos do regime colaboracionista. Naquela altura, a cidade tinha 35 mil habitantes – hoje, ronda os 110 mil – e tinha 400 palacetes.

“Foi em Vichy que se pôs fim à Terceira República francesa. Pétain e os seus ministros escolheram instalar aqui a capital, e não em Paris, por causa dos seus espaçosos hotéis e porque tinha uma central telefónica potente”, lembra o escritor Sylvain Beltran. Os hotéis da cidade serviram de sedes governamentais a Pétain.

Sem ir mais longe, o número 3 da praça Joseph Aletti assinala a entrada do Hotel Aletti Palace, a escassos metros da Ópera. Há 70 anos, este hotel chamava-se Hotel Thermal e albergou os gabinetes do Ministério da Guerra. Outro exemplo de hotéis que foram usados pelos militares é o Hotel Du Parc, onde viveu o próprio Marechal Pétain, no terceiro andar, e que, agora, está convertido em edifício de apartamentos. Nos conselhos de ministros do Hotel Du Parc foram decididas as deportações em massa de judeus para os campos de concentração nazis, a partir da França ocupada. As ordens nazis foram cumpridas e deportaram-se, em comboios, 75 mil 721 judeus – 11 mil e 400 crianças – para os campos da morte. Regressaram, apenas, três mil.

“Como esquecer que, em Vichy, se decidiu a morte de milhares de pessoas porque Pétain optou por colaborar com o nazismo, para evitar males maiores para a França?”, pergunta Beltran. A ideia passa por reconhecer um passado inapagável, mas transformando-o em enriquecimento cultural. É assim que o entende este escritor que, desde 2001, organiza, precisamente no Hotel Aletti, umas conferências políticas sob o título ‘Les entretiens publics’ (‘As entrevistas públicas’). O antigo Secretário-Geral da ONU, Boutros Ghali, a representante da Palestina junto da UE, Leila Shahid, ou o grande rabino de França, Gilles Bernheim, são algumas das pessoas que já participaram nestas conferências.

“Quero demonstrar que Vichy não é só a época de Pétain, “Quero demonstrar que Vichy não é só a época de Pétain, mas que, agora, existe uma vida cultural mais activa”, garante Beltran. Salvo uma ou outra placa comemorativa que recorda esta página terrível do colaboracionismo, há anos que a cidade se promove com uma grande oferta hoteleira dirigida ao turismo e à organização de diversos eventos. Estes factos demonstram que Vichy quer superar a sua história. A necessidade de olhar o presente chega a tal ponto que os habitantes da cidade defendem o seu gentílico para que não haja confusões. “Somos vichyssois e não vichystes (apoiantes de Pétain)", comenta Jérôme, funcionário municipal.

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