Spam estatal

Tem fama de ser o alemão mais mauzinho da Net: Martin Münch fornece programas de vigilância à polícia e aos serviços secretos. Este software também é utilizado pelos ditadores para policiar os cidadãos.

Publicado em 22 Fevereiro 2013 às 12:48

No filme Mulan, da Disney, tudo é tão simples! A heroína combate os hunos no exército chinês, lado a lado com homens desordeiros. O filme retrata os adversários de Mulan como criaturas da sombra, sem rosto. O bem contra o mal – um clássico.
Martin Münch vive num filme da Disney. Sabe quem são os maus. E sabe que faz parte dos bons. Tem apenas um problema: os outros não sabem isso.

O vírus afeta a memória digital

Para eles, Martin Münch situa-se no bando dos maus na Primavera Árabe, ao lado dos opressores. Os defensores dos direitos humanos acusam-no de fornecer a ditaduras, de forma intencional ou irrefletida, programas informáticos de vigilância.
Martin Münch, de 31 anos, é um informático que desenvolve programas-espiões para computadores e telemóveis. Estes programas infetam a memória digital e vasculham a ciber-intimidade das vítimas. Graças a eles, a polícia e os serviços secretos podem saber de que sintomas sofre, por exemplo, um indivíduo “vigiado”, analisando as pesquisas que faz no Google. O cavalo de Troia que permite tudo isto chama-se Finfisher. É por estarem dissimulados em ficheiros aparentemente inofensivos que estes programas são designados por “cavalos de Troia”.
Martin Münch orgulha-se do seu produto. Mostrou-o, pela primeira vez, a jornalistas alemães. As portas envidraçadas do seu gabinete, em Munique, estão ornamentadas com o nome da sua empresa: Gamma Group.
Martin Münch alarga-se na descrição dos seus “brinquedos” tecnológicos, talvez por ser autodidata. Não tem qualquer formação especializada nem estudou informática – frequentou apenas um ano e meio de piano-jazz e guitarra.
Para os investigadores Martin Münch parece-se um pouco com Mushu, o pequeno dragão descontraído que ajuda Mulan em combate. Martin Münch tem uma empresa através da qual é dono de 15% das ações da Gamma International GmbH. Chamou à sua firma Mushun, por causa do dragão do filme. Limitou-se a acrescentar um “n” no fim, confessa com uma risada desconfortável. Também é diretor-geral da Gamma.
O produto-estrela da Gamma pertence à gama Finfisher e chama-se Finspy. Martin Münch debruça-se sobre o seu computador portátil da Apple e mostra-nos o que o seu programa é capaz de fazer. Para começar, o utilizador escolhe o sistema de exploração que pretende atacar: trata-se de um iPhone da Apple, de um smartphone equipado com o sistema de exploração da Google, o Android, ou de um PC? Funciona com o Windows ou com o sistema operativo gratuito Linux?

Ataques dignos de filmes de ação

O investigador pode introduzir o número de servidores pelos quais transitará o cavalo de Troia, para que mesmo as vítimas com conhecimentos de informática sejam incapazes de saber quem as vigia.
Em seguida o investigador pode selecionar a virulência do seu cavalo de Troia, ou seja, definir o que este pode fazer: utilizar um microfone para escutas; consultar dados gravados e copiá-los antes que sejam apagados ou modificados; ler o que o utilizador está a escrever; gravar conversas tidas no Skype; ligar a câmara de vídeo do computador para ver onde está guardado o material; servir-se da função de localização por GPS existente num smartphone como se fosse um emissor. Isto apesar de a maioria das funções do Finspy ser ilegal na Alemanha.
O Finspy não é oferecido. O preço, de cerca de 150 mil euros, pode subir até aos sete dígitos, acredita Martin Münch. É que a Gamma concebe, para cada um dos seus clientes, uma versão personalizada do cavalo de Troia, que terá de estar em conformidade com a legislação do país em causa. `“O alvo são os delinquentes isolados.” Martin Münch não fala de “presumíveis delinquentes”, emprega os termos “delinquentes” e “prevaricadores” como se fossem sinónimos de “suspeitos” ou “pessoas vigiadas”.

Programa utilizado no Barhein

Alaa Shehabi é uma dessas pessoas vigiadas. O seu crime: ter criticado o Governo do seu país. A jovem nasceu no Bahrein, um Estado insular do Golfo Pérsico. É uma monarquia e um Estado policial. O sunita Hamad Ben Issa al-Khalifa reina sobre uma população de maioria xiita. Quando a Primavera Árabe chegou ao país, há dois anos, tendo Alaa Shehabi engrossado as fileiras de milhares de pessoas que exigiam reformas, o rei pediu ao exército saudita que viesse em seu auxílio. Fotos e vídeos publicados na Internet mostram olhos queimados pelo gás lacrimogéneo e membros dilacerados por explosões de chumbo.
Os organizadores das corridas de Fórmula 1 não viram nisto qualquer problema e enviaram convites para o Grande Prémio de Manama (capital do Bahrein). A oposição tentou contar a verdade a alguns jornalistas que se deslocaram ao país. Até Alaa Shehabi, que esconde o cabelo negro sob um véu, teve encontros com jornalista. Falou da violência policial, dos feridos e dos mortos. Quebrou um tabu.
Alaa Shehabi optou pela prudência. Verificava se estava a ser observada e apagou o telefone durante a entrevista. Ainda assim a polícia visitou-a, passado pouco tempo. Os agentes não a prenderam, mas ela recebeu um primeiro email com o título: “Relatório de tortura sobre Nabeel Rajab”. Em anexo vinham fotos que representavam, supostamente, as sevícias perpetradas contra Nabeel Rajab. Nabeel é um amigo de Alaa, opositor como ela. Alaa tentou abrir o ficheiro. Em vão. Melhor para ela, pois o anexo dissimulava, na verdade, um cavalo de Troia da empresa Gamma. O Estado policial do Bahrein colocou Alaa na mira e usou o programa de Martin Münch.

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Uma atividade sob forte sigilo

Programas-espiões para um Estado policial? Face a esta acusação a reação da Gamma é estranha. Martin Münch enviou um comunicado à imprensa no qual explicava que fora subutilizada uma versão de avaliação, destinada aos clientes. Não disse uma palavra sobre o Bahrein. Martin Münch não revela a identidade dos clientes da Gamma. Tão-pouco diz quem é que não é cliente. Toda a sua atividade está sob sigilo. A empresa terá de lidar com a queixa oficial apresentada ao Ministério da Economia alemão por membros dos Repórteres sem Fronteiras e também por defensores dos direitos humanos, que exigem um endurecimento do controlo sobre os destinatários dos produtos Gamma, fazendo referência às recomendações – facultativas, é certo – da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE).
À mínima ocasião, Martin Münch recorda que a sua empresa cumpre as leis alemãs em vigor no que toca às exportações. Não obstante, os produtos Finfisher são expedidos a partir de Inglaterra.
O Reino Unido e a Alemanha estão sujeitos ao mesmo regulamento da União Europeia para a exportação de tecnologias de vigilância. Segundo os termos deste documento, as tecnologias de vigilância não são armas, mas materiais que podem ser utilizados com fins civis ou militares. No jargão fala-se de dual use [utilização dupla]. As condições que regem a sua exportação são, por isso, muito menos severas do que as estabelecidas para a venda de blindados. Afinal de contas é como se a Gamma recebesse dos seus clientes um certificado declarando que o programa Finfisher foi bem instalado no destinatário correto, o Estado carimbasse esse papel e a Gamma o arquivasse de imediato.
Desde a Primavera Árabe, respira-se na Gamma um ar menos puro. Numa repartição governamental os opositores egípcios descobriram uma oferta da empresa alemã, dirigida ao Governo que tinham acabado de derrubar: um orçamento para programas, materiais e ações de formação, no valor de 287 137 euros. A encomenda não chegou a ser entregue, garante Martin Münch.

Rumo a uma maior transparência?

Este homem parece sinceramente indignado perante a atitude dos seus críticos. “Atribuem-nos sempre o papel de maus. Não é agradável”. E, a seu ver, não é merecido. “Muita gente diz: ‘Não gosto disto, é uma intromissão na vida privada’. Mas o facto de não lhes agradar não significa que estejamos a fazer algo de ilegal”.
Martin Münch promete agora, ainda assim, uma mudança: mais transparência e atos concretos. Um representante dos direitos humanos deverá, em breve, ter assento no Conselho de Administração da Gamma. Esse título poderá recair sobre o próprio Martin Münch. Depois de uma entrevista de várias horas, tem-se a sensação de que a bússola moral de Martin Münch perdeu o Norte.
Criou um código de conduta, não obstante, que proibirá a exportação para países que violam os direitos humanos. A Gamma estará em contacto com duas organizações de defesa dos direitos humanos, cujos nomes não revela. Terão o estatuto de consultores em casos litigiosos. Ele próprio abstém-se de traçar uma linha clara: afinal os Estados Unidos da América utilizaram a tortura em Guantánamo – isso impede que sejam um Estado de Direito?
O escândalo deixou-o literalmente estupefacto, afirma Martin Münch: “Os programas não torturam ninguém!”. Não consegue perceber o clamor. “Acho bem que a polícia possa fazer o seu trabalho”. Apanhar os maus. No Bahrein, os maus são os opositores políticos.

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