Pela quinta vez na História, a Catalunha tem diante de si o horizonte da independência. Há um lado fundo e outro circunstancial nesta viragem da Catalunha para a emancipação de Madrid. O Estado espanhol é uma criação política, apoiada sobre uma malha de acordos que têm garantido a permanência de hegemonias económicas e sociais, que se sobrepôs a uma pluralidade de nações com identidade própria e com muita História às costas. A fragilidade desta construção foi obviada em 1978 com uma transação constitucional entre nacionalismos e centralismo - as autonomias foram a fórmula institucional e jurídica do negócio.
Mas o negócio em si foi outro: torneira generosa de canalização de recursos para as comunidades autónomas, obra feita, modernização, futuro. Enquanto houve dinheiro para investimentos que consolidassem a dominação tranquila das elites locais, o arranjo funcionou. A direita nacional e local deu expressão emblemática a esse estado de alma: quando Aznar proclamava na Moncloa "a Espanha vai bem", Jordi Pujol acrescentava no Palacio da Generalitat "e a Catalunha vai melhor".
E é aqui que entra a circunstância. 822 000 desempregados e 22 meses de cortes sucessivos nas políticas sociais pela mão do Governo da CiU juntaram-se, como gasolina em fogueira, ao bloqueamento do financiamento das autonomias pelo Estado central, em virtude de uma revisão da constituição espanhola feita em velocidade supersónica por ordem de Berlim e Bruxelas e obedientemente cumprida pelos prestimosos intérpretes locais do costume: Partido Popular e PSOE, os mesmos que agora invocam a intocabilidade da constituição quando se trata de admitir que o povo catalão possa, em referendo, exprimir o seu direito à autodeterminação.
Centro dessa revisão constitucional, o novo pacto fiscal entre Madrid e as autonomias, constitui, na sua obsessão pela austeridade, um verdadeiro monumento à falta de bom senso político. Fazer tábua rasa dos impactos explosivos que o corte abrupto de financiamento público inevitavelmente causaria no relacionamento entre o Estado central e as comunidades autónomas é prova de uma total irresponsabilidade política. Em Espanha como em Portugal ou na Grécia, o pirómano berlinense e os seus agentes locais deitaram fogo a todos os equilíbrios sociais e pouco lhes importa se assim se libertarem os demónios mais indesejáveis - tudo deve ser imolado no altar da deusa austeridade.
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Visto da Catalunha
“O comboio catalão desliza demasiado rápido para se poder parar”
Na Catalunha, a hipótese de separação desta região de Espanha não é vista necessariamente como uma catástrofe, tal como sublinha o editorialista Fernando Ónega no diário de Barcelona La Vanguardia:
Quando um parlamento se revolta e exige uma consulta popular para iniciar a transição nacional e o governo do Estado anuncia a sua intenção de a impedir, estão criadas as bases de um conflito. E acrescento: quando os jornais na Catalunha falam de direito democrático e as agitadas correntes de opinião de Madrid falam numa “atitude louca [do governador da Catalunha, Artur] Mas”, o conflito não se limita aos políticos, mas já contagiou a sociedade.
A questão é pois conduzir a transição evitando a colisão frontal entre os dois comboios. […] Com este cenário, o senhor Mas compromete-se a efetuar o referendo, embora [o primeiro-ministro Mariano] Rajoy o não autorize; e nesse momento, o exercício da democracia transformar-se-á num desafio. Num braço de ferro. E que ninguém tenha dúvidas em Madrid: é impossível, ou muito difícil, fazer marcha atrás. […] O que não sei é se será demasiado tarde. O comboio catalão desliza demasiado rápido para se poder parar.