Faço-o à minha maneira.

A Alemanha tem um diferendo com a Europa

Sendo a crise mais grave que a União Europeia teve de enfrentar até hoje, a crise grega é também um teste ao que a Europa significa para a Alemanha, escreve a Gazeta Wyborcza.

Publicado em 19 Maio 2010 às 14:46
Faço-o à minha maneira.

“Ms Europe transformou-se em Frau Germania”, escreveu o ex-ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Joschka Fischer, no início do mês de Abril, sugerindo que Angela Merkel, uma verdadeira figura europeia de Estado, se deixou tomar pelo egoísmo nacional. De facto, Angela Merkel tem bons motivos para não ceder à pressão dos mercados e dos europeus.

Assegurar o pacote de resgate à Grécia no meio das maiores dificuldades e conseguir o envolvimento do FMI demorou, mas foi necessário. A ajuda financeira à Grécia nunca foi questionada em Berlim – não apenas por causa da estabilidade do euro, como também do interesse nacional. A falência da Grécia atingiria, em primeiro lugar, os bancos alemães, a quem Atenas deve cerca de 40 mil milhões de euros. Seriam os contribuintes alemães os principais prejudicados.

Se neste momento a Alemanha tem um problema com a Europa, não foi por mesquinhez. A incapacidade que o país revelou em aceitar o optimismo europeu ficou mais a dever-se às alterações que ocorreram no espaço europeu à sua volta do que à regularização e renacionalização pós-unificação. Berlim tem de clarificar o seu papel na UE. A questão é que as importantes premissas sobre as quais assentava já não existem. “A dinâmica do envolvimento europeu da Alemanha sempre foi definida por grandiosos projectos: mercado único, alargamento, moeda única, constituição europeia. Hoje, este objectivo emocional e elitista não existe”, explica Rainder Steenblock, antigo especialista europeu dos Verdes.

Rampa de lançamento para a economia alemã

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Na perspectiva da Alemanha, todos estes projectos tinham muitas coisas em comum. Em primeiro lugar, deram origem a uma UE na qual Berlim se sentia em casa. A questão do federalismo, o princípio da subsidiaridade, a ajuda estrutural, uma moeda europeia baseada no modelo do marco alemão, um quadro normativo idêntico ao que rege o sistema político alemão, tudo se tornou fundamental no funcionamento da UE.

A Alemanha era um exemplo a seguir e isso serviu para a UE e para a própria Alemanha. Mesmo o modelo da presença internacional da UE – a missão de um poder democratizante e civilizacional – coincidiu na perfeição com a cultura política alemã, cautelosa em relação a qualquer forma de militarismo ou exercício do poder. Em segundo lugar, todos estes marcos da integração europeia se conciliavam perfeitamente com a "raison d’état" da República Federal do pós-guerra, desejosa de ancorar a Ocidente, e com os seus interesses mais imediatos.

Sobretudo, transformaram-se em rampa de lançamento para a economia alemã. Entre 2000 e 2008, as exportações da zona euro alemã passaram de 19 para 25% do PIB. O alargamento para Oriente e a eliminação do risco cambial impulsionaram ainda mais as exportações. Em 2008, o “campeão do mundo das exportações” registou um excedente de 200 mil milhões de euros.

Modelo alemão perde atracção pela Europa

Durante décadas, o modelo alemão e o modelo europeu encaixaram na perfeição. Mesmo quando os projectos do Euro ou do alargamento depararam com a relutância generalizada, as elites perceberam que os sucessivos passos no sentido da construção de uma “União ainda maior” eram fundamentais para a prosperidade e para a segurança da Alemanha. Este sentimento já não existe hoje. “Mais Europa” é uma ideia que já não alimenta o modelo alemão.

A crise grega provou que a Europa nunca se irá transformar numa Alemanha. Pelo contrário, os instrumentos que, até à data, melhor serviram os alemães – independência do banco central, inflação baixa como objectivo absoluto, soberania da política económica – estão a perder, rapidamente, o seu significado. Na perspectiva de Berlim, está a chegar ao fim um importante período da integração europeia. O modelo alemão já não atrai a Europa. Se cada um dos países se tornar campeão do mundo das exportações, quem lhe irá comprar os produtos?

As normas restritivas do pacto de estabilidade – uma ideia alemã –, que introduzem sanções ao incumprimento orçamental, revelaram-se ineficazes – nem protegeram a UE da crise, nem proporcionaram a convergência económica da Europa. Neste momento, a UE tomou um caminho que exige não apenas a liderança de Berlim, como também uma reformulação profunda do seu modo de pensar e de gerir a política económica.

Fragilidade conceptual da Alemanha

A Alemanha carece de uma maior procura interna, de mais investimento público na educação e de um sector terciário mais forte, são os argumentos de quem advoga um novo modelo de crescimento económico alemão. Segundo o indicador de inovação, publicado o ano passado pelo Instituto alemão de Investigação Económica (DIW Berlin), Berlim ocupava o nono lugar entre os 17 países industrializados e, relativamente ao sistema educativo e ao financiamento da investigação académica, o fim da lista.

Uma política direccionada para os sectores da indústria tradicional (automóvel, química e técnica), que contava com garantias à exportação, subsídios à investigação, benefícios fiscais e protecção governamental, é uma relíquia dos tempos de outrora. “A Alemanha deveria começar a despedir-se da menina dos seus olhos: o carro a gasolina”, escreve Uwe Jean Heuser, um conhecidíssimo analista económico, no seu livro Was aus Deutschland werden soll. O futuro fica algures – nas tecnologias de ponta e numa mão-de-obra qualificada. O problema europeu da Alemanha não é causado por um desejo irreal de um novo império, mas por uma fragilidade conceptual que não deixa a Alemanha desempenhar o seu papel de liderança.

Berlim está ideologicamente à defensiva porque não sabe exactamente qual o melhor caminho a seguir. O facto de a discussão interna sobre o futuro do modelo económico ter coincidido com grandes desafios nesta matéria no seio da UE não tornou a situação mais fácil para os alemães. Mas o paradoxo é a possibilidade de uma Europa menos alemã se revelar bastante mais vantajosa para a própria Alemanha. A questão é saber quanto tempo irão os alemães demorar a perceber isso.

Visto de Berlim

Angela não cede nada

Criticada na Europa pela sua intransigência para com a Grécia, Angela Merkel persiste nos mesmos sinais numa [entrevista conjunta](http://www.lemonde.fr/europe/article/2010/05/17/angela-merkel-pour-l-allemagne-la-culture-de-stabilite-n-est-pas-negociable_1353108_3214.html "joint

interview") com o Corriere della Sera, Le Monde e El País. “A solidariedade e a solidez são inseparáveis. Para a Alemanha, esta cultura de estabilidade ou de solidez não é negociável”, lembra a Chanceler alemã, acrescentando: “somos europeus por vontade própria e sabemos o que nos traz o euro. Mas sentimo-nos reforçados por termos negociado, intransigentemente, os aspectos particularmente importantes para nós”.

Provando esta mesma vontade de manter a pressão sobre os parceiros, [o Handelsblatt publica](http://www.handelsblatt.com/politik/deutschland/strategiepapier-merkels-rettungsplan-fuer-den-euro;2583703 "published

by Handelsblatt") um documento confidencial do ministro das Finanças sobre a estratégia para as próximas negociações. Para reformar o pacto de estabilidade, Berlim propõe “um exame rigoroso e independente” dos programas de estabilidade dos países da zona euro, pelo BCE, ou “um círculo de institutos de pesquisa”.

Outra proposta: “Os países da zona euro que não respeitem os objectivos de redução do défice serão privados, temporariamente, de fundos estruturais”, ou até mesmo definitivamente, em casos extremos. Os países que violarem as regras da União Monetária perdem o direito de voto no Conselho Europeu pelo menos durante um ano. Berlim encara mesmo a hipótese de, em caso de falência, um Estado deficitário se transformar em “protectorado da Comissão Europeia”, segundo noticia o Handelsblatt. “A Alemanha propõe agora um modelo, coisa que há muito faz falta”, regozija-se o diário económico que fala de uma “volta completa”. “No interesse da Europa, devemos continuar neste caminho. A Alemanha deve manter-se firme.”

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