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O rapto de Europa, por Rembrandt (1632)

A Tia Europa não faz sonhar

Mais de 50 anos após o Tratado de Roma, a União é como uma mulher de idade madura: a aparência mascara as suas qualidades. Cabe aos cidadãos habituar-se a uma relação sem paixão, observa o filósofo alemão Wolfram Eilenberger.

Publicado em 23 Dezembro 2009 às 11:51
O rapto de Europa, por Rembrandt (1632)

A União Europeia sofre de um grande défice de imagem. Os seus progressos e resultados não podem ser ignorados: para ela, o ano de 2009 fica assinalado com uma bola branca. No entanto, a confederação desfruta de pouco reconhecimento, para não falar de simpatia, por parte dos seus cidadãos. A que se deve isso?

A principal razão para tal escândalo reside, sem dúvida, na imagem alegórica que o nosso continente se compraz em dar de si mesmo desde os seus primórdios. Nada causou mais danos à popularidade da UE que a sua identificação cultural – profundamente enraizada nos espíritos e incessantemente incentivada pelos políticos – com uma jovem virgem de roupa diáfana, cujos encantos múltiplos subjugariam mesmo os deuses mais poderosos. É a este fantasma mítico (masculino) que se deve ainda hoje o desfasamento, necessariamente decepcionante, entre os nossos desejos e a experiência do quotidiano. No "mundo real", a Europa nasceu em 1957, com o Tratado de Roma, e conta, por conseguinte, 52 primaveras. O que não é uma idade fácil – para uma mulher.

Segura de si, culta, de aparência cuidada, falando correntemente várias línguas, não fumadora, financeiramente independente, inteligente, aberta aos outros, faz uma vida saudável, gosta de viagens, domina a ironia, aprecia a beleza. Mas, para lá da publicidade e indo direito ao essencial: são 52 anos. O "desempenho" é mais decepcionante.

Aos 52 anos, as mulheres não têm qualquer possibilidade de participar num “casting”. E se julga que se trata de um diagnóstico cínico, acrescento que estes critérios de selecção não são apenas dos homens, para alimentar os seus fantasmas, mas também dos directores de revistas, na sua concepção, e, sobretudo, do estimado público, na orientação das suas escolhas nos quiosques de jornais.

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O fim do amor ao estilo Berlusconi?

Este descontentamento tem indubitavelmente a ver com a situação existencial da mulher depois dos 50 anos. Com que pode ainda sonhar? Os filhos saíram de casa, a relação com o parceiro é caracterizada, no melhor dos casos, por uma indiferença tranquila, os encantos outrora excitantes da União têm hoje um travo a requentado, para não dizer insípido. Ela desleixou-se um bocado. Até profissionalmente, os grandes feitos pertencem há muito ao passado. É, hoje, a tia com posses, que mete de vez em quando uma nota de 20 euros no bolso dos benjamins da família – o que resume as expectativas da maioria dos europeus a seu respeito.

Tem ela própria o seu quinhão de responsabilidades nisso. Pragmática e determinada no seu obsoleto vestido azul-escuro, age, imperiosa, acrescentando que é para o nosso bem, numa mistura de preceptora moralista e de Angela Merkel. Evidentemente, trata-se de uma imagem de uma gritante injustiça, sobretudo se pensarmos no papel fundamental que desempenham as mulheres de mais de 50 anos na nossa sociedade.

Por conseguinte, somos constantemente remetidos para a imagem mitológica da Europa: Zeus, o Deus dos Deuses, transbordante de vitalidade, marido de Hera (o protótipo da mulher de mais de 50 anos), corre atrás de uma graciosa rapariga de província um pouco selvagem, qual Berlusconi, ferra-a, faz-lhe três filhos e, seguidamente, oferece-a a um rei sem descendência, para que faça dela sua esposa. A Europa aceita tudo sem replicar e passa a gozar de uma existência calma e sem sobressaltos no interior dos seus domínios.

E então? Não seria esta uma perspectiva sedutora para o futuro da nossa União Europeia: uma coabitação tranquila, liberta da sede de aventuras e de expansionismo, fazendo História sem se pôr com histórias? Sim, a perspectiva é sedutora. Mas para apreciar plenamente uma Europa chegada à maturidade, os nossos concidadãos terão de fazer o não pequeno esforço de aprender a gostar do seu quotidiano, frequentemente sem grandes emoções – e é precisamente esse, ninguém o ignora, o maior dos desafios.

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