Quem é que pode chamar o doutor?

A União Europeia está a morrer

Renacionalização da política, queda económica dolorisa, alargamento apressado, populismo... eis alguns dos motivos por que os entendidos de Washington creem que a UE é uma coisa do passado.

Publicado em 2 Setembro 2010 às 16:32
Quem é que pode chamar o doutor?

A União Europeia está a morrer – não de morte súbita ou violenta, mas de morte tão lenta e certa que um destes dias vamos olhar por cima do Atlântico e perceber que o projeto de integração europeia que demos como garantido nesta última metade do século já não existe.

O declínio da Europa, em parte, é económico. A crise financeira afetou drasticamente muitos Estados-membros da União Europeia e as dívidas nacionais elevadas e uma saúde incerta dos bancos do continente são sinal de mais problemas. Mas estas aflições ficam atenuadas em comparação com um mal maior: de Londres a Varsóvia, passando por Berlim, a Europa atravessa um período de renacionalização da vida política, com os países a recuperar a soberania que um dia não se importaram de sacrificar em prol de um ideal comum.

Para muitos europeus, esse bem maior já não tem importância. Interrogam-se sobre aquilo que a UE terá para lhes oferecer e não sabem se valerá a pena. A continuar assim, comprometem um dos feitos mais significativos e insólitos do século XX: uma Europa integrada e em paz que tenta projetar o poder como um todo coerente. Consequentemente, as nações individuais ficariam consignadas a uma irrelevância geopolítica – e os Estados Unidos da América deixariam de ter um parceiro desejoso ou capaz de arcar com responsabilidades globais.

Alemanha contagiada

A corrosão do apoio a uma Europa unificada está a contagiar a Alemanha, cuja obsessão em eliminar as rivalidades nacionais, que em tempos subjugaram o continente a guerras entre grandes potências, fez dela o motor da integração. A recente relutância de Berlim em salvar a Grécia no período de crise financeira quebrou o espírito de bem comum que é o traço que distingue a Europa no seu conjunto.

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Está a crescer um populismo de direita – fruto, basicamente, de uma reação violenta contra a imigração. Este nacionalismo feroz não surge apenas por causa das minorias, mas também pela falta de autonomia decorrente da união política. Por exemplo, o partido Jobbik húngaro, com um pendor xenófobo, conquistou 47 mandatos nas eleições deste ano – contra nenhum em 2006. Até mesmo na tolerante Holanda, o Partido da Liberdade, de extrema direita, conquistou recentemente mais de 15% dos votos, com sete mandatos a menos do que o partido da maioria.

Caso estes obstáculos a uma união estável não fossem suficientemente preocupantes, em julho, a Bélgica assumiu a presidência rotativa da UE. Neste país, os cidadãos flamengos que falam neerlandês e os cidadãos valões que falam francês estão tão divididos que, muito depois das eleições de junho, ainda não existe uma coligação governamental possível. É muito significativo que o país neste momento à frente do projeto europeu padeça exatamente do tipo de antagonismo nacionalista que a UE veio eliminar.

Mudança de geração

Acima de tudo, a renacionalização da política europeia é o resultado de uma mudança geracional. Para os europeus que passaram pela II Guerra Mundial e pela Guerra Fria, a UE foi a saída para fugir a um passado sangrento. Mas não para os jovens europeus. Segundo uma sondagem recente, os cidadãos franceses com mais de 55 anos são quase o dobro dos seus compatriotas com menos de 36 anos a encarar a UE como uma garantia de paz. Não admira que os novos líderes europeus calculem friamente o valor da UE em termos de custo-benefício e não como um artigo de fé.

Entretanto, as exigências do mercado global, aliadas à crise financeira, estão a pressionar o Estado-Providência europeu. À medida que a idade da reforma aumenta e os subsídios baixam, a UE é muitas vezes apresentada como bode expiatório de novos sacrifícios. Em França, por exemplo, as campanhas anti-Europa focaram a sua ira no assalto "anglo-saxónico" à assistência social da UE e no "canalizador polaco" que aceita biscates locais por causa da abertura do mercado de trabalho europeu.

Ganhar tempo talvez seja o melhor que a UE tem a fazer neste momento, mas a queda vai continuar, com custos mesmo para aqueles que estão fora da Europa. A administração de Barack Obama já manifestou a sua frustração em relação a uma União Europeia com um perfil geopolítico decadente. Robert Gates, secretário da Defesa norte-americano, queixou-se em fevereiro, num encontro com representantes da NATO, que "a desmilitarização da Europa – onde grandes camadas de público em geral e classe política são avessas à força militar e aos riscos que ela acarreta – deixou de ser uma bênção do século XX para se tornar um impedimento à verdadeira segurança e a uma paz duradoura no século XXI". À medida que tentam saldar a dívida e dar algum alívio às suas forças armadas, os EUA vão julgar cada vez mais os seus aliados pelo que trazem para a mesa. No caso da Europa, a oferta é pequena e cada vez menor.

Guerra não voltará

A Europa dificilmente voltará a estar em guerra; as nações europeias perderam o gosto pelos confrontos armados. Em vez disso, com menos drama, mas igual firmeza, a política europeia irá tornar-se menos europeia e mais nacional, até ao momento em que a UE seja uma união apenas nominal. Isto poderá não ser uma grande perda para alguns, mas num mundo que carece em absoluto da vontade, riqueza e força agregadoras da UE, uma Europa fragmentada e introvertida representaria um retrocesso histórico.

Há 60 anos, Jean Monnet, Robert Schuman e Konrad Adenauer foram os fundadores da Europa. Hoje, a União Europeia precisa de uma nova geração de líderes que possa injetar vida num projeto que se aproxima perigosamente do fim. Neste momento, esta geração não se encontra em lado nenhum.

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