Tony Blair em Maio de 2006 (AFP)

Cego pelas Luzes

Perante a comissão de inquérito Chilcot, Tony Blair não expressou nenhum pesar pela sua decisão de entrar na guerra do Iraque. Bruce Anderson argumenta, no The Independent, que ele foi levado por uma típica ilusão do pensamento das Luzes: a de que é possível remodelar a natureza humana e o mundo à imagem do Ocidente.

Publicado em 1 Fevereiro 2010 às 17:41
Tony Blair em Maio de 2006 (AFP)

Tony Blair tem uma habilidade quase shakespeariana para reduzir o mundo a um simples palco. No inquérito sobre a guerra do Iraque, pediu para interpretarmos as suas acções num contexto mais vasto: quer que deixemos de ver à lupa o facto em si e que avaliemos a sua boa fé em matéria de ambições à escala planetária. Contudo, mesmo que o fizéssemos, isso não faria dele um Henrique V vitorioso. Seria uma Tragédia de Tony Blair, episódio de uma série que começada com a Tragédia do Ocidente no Médio Oriente, e que poderia terminar com a Tragédia da Raça Humana.

Os grandes Estados modernos têm hoje meios para pôr em acção um imenso poderio militar. Mas o crescimento da máquina de guerra não foi acompanhado por uma maior sabedoria em matéria de estratégia. É fácil começar guerras; mais difícil é conduzi-las a um resultado satisfatório. Quando se é tão forte como o Ocidente, é possível alterar o destino de outras nações e continentes. Antes de o fazer, é vital medir todas as possíveis consequências. Não o ter feito foi a maior falha no Iraque.

Dêem-lhes a democracia e tudo correrá bem

Bastava ter estudado a História do Século XX para saber isso. A Primeira Grande Guerra destruiu o Império Otomano, criando um vazio estratégico no Médio Oriente. Contudo, naquela altura, isso não era patente; a maior parte da região foi absorvida no acto final do imperialismo europeu. A Segunda Guerra Mundial veio colmatar a stuação. Mas ninguém elaborou um novo sistema. Era geralmente aceite que poderíamos continuar a controlar o Médio Oriente a partir de uma rede de regimes favoráveis. Nenhum político ocidental de génio chegou a uma conclusão radicalmente diferente, que permitisse realinhar a nossa diplomacia para o apoio a forças aparentemente menos amigáveis. Nasseristas, baasistas, nacionalistas árabes de vários tipos: embora a maioria fosse instintivamente antiocidental, os planos que tinham para os seus países não eram fundamentalmente irreconciliáveis com interesses ocidentais significativos.

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Sempre que os árabes se procuraram modernizar, devíamos tê-los incentivado no tipo certo de modernização. Mas isso não aconteceu. Depois, veio o 11 de Setembro, que levou à convicção de que estávamos perante um conflito de civilizações. George Bush perguntava por que nos odiavam. Os neo-conservadores responderam: porque muitos deles vivem em Estados em dissolução, com as vidas constrangidas pela opressão. Dêem-lhes democracia e liberdade e tudo entra nos eixos.

Desde a época das Luzes, os intelectuais foram frequentemente seduzidos pela ilusão de que é possível moldar a natureza humana e de que a ciência política pode resolver problemas com a mesma exactidão matemática das ciências naturais. O marxismo foi a fantasia mais persistente, embora o fascismo e o apartheid também merecessem a menção desonrosa. Houve um único projecto das Luzes que resultou: os EUA. Teve a vantagem de, à partida, os seus teóricos nunca terem estado afastados, pairando no espaço e tempo. Os homens que escreveram a Constituição foram os mesmos que tiveram de lutar com as realidades da governação.

Um herói trágico e destruído

No Iraque, essas realidades foram ignoradas. Tony Blair, um herói trágico, foi traído pela sua boa vontade. Foi conduzido para o Iraque pelo idealismo e pela grandiosidade. Convencido de uma verdade moral superior, considerou que se justificava ignorar questões triviais. Sobretudo, achava que se justificava orientar a guerra a partir do seu sofá, evitando falar com quem pudesse ter sugerido uma análise mínima dos piores cenários. Uma vez autoconvencido, manteve-se longe de tudo o que pudesse ameaçar as suas certezas.

O Iraque virá um dia a funcionar, mas muito mais tarde do que devia, e sobretudo não suficientemente depressa para travar a produção de ondas de jovens irados no interior do islamismo – para quem a Palestina é um espinho infectado – e de regimes ameaçadores. A ameaça está a crescer, enquanto a confiança ocidental vai enfraquecendo. Saddam não tinha, afinal, armas de destruição maciça; mas quanto tempo faltará para que os terroristas as adquiram? Numa altura em que precisamos de um Governo forte, Tony Blair mina a confiança pública. Esperemos que não tenha de se defender perante a comissão do Anjo Gabriel, que tenha de examinar os erros de cálculo que possam levar à Terceira Guerra Mundial.

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