Tony Blair tem uma habilidade quase shakespeariana para reduzir o mundo a um simples palco. No inquérito sobre a guerra do Iraque, pediu para interpretarmos as suas acções num contexto mais vasto: quer que deixemos de ver à lupa o facto em si e que avaliemos a sua boa fé em matéria de ambições à escala planetária. Contudo, mesmo que o fizéssemos, isso não faria dele um Henrique V vitorioso. Seria uma Tragédia de Tony Blair, episódio de uma série que começada com a Tragédia do Ocidente no Médio Oriente, e que poderia terminar com a Tragédia da Raça Humana.
Os grandes Estados modernos têm hoje meios para pôr em acção um imenso poderio militar. Mas o crescimento da máquina de guerra não foi acompanhado por uma maior sabedoria em matéria de estratégia. É fácil começar guerras; mais difícil é conduzi-las a um resultado satisfatório. Quando se é tão forte como o Ocidente, é possível alterar o destino de outras nações e continentes. Antes de o fazer, é vital medir todas as possíveis consequências. Não o ter feito foi a maior falha no Iraque.
Dêem-lhes a democracia e tudo correrá bem
Bastava ter estudado a História do Século XX para saber isso. A Primeira Grande Guerra destruiu o Império Otomano, criando um vazio estratégico no Médio Oriente. Contudo, naquela altura, isso não era patente; a maior parte da região foi absorvida no acto final do imperialismo europeu. A Segunda Guerra Mundial veio colmatar a stuação. Mas ninguém elaborou um novo sistema. Era geralmente aceite que poderíamos continuar a controlar o Médio Oriente a partir de uma rede de regimes favoráveis. Nenhum político ocidental de génio chegou a uma conclusão radicalmente diferente, que permitisse realinhar a nossa diplomacia para o apoio a forças aparentemente menos amigáveis. Nasseristas, baasistas, nacionalistas árabes de vários tipos: embora a maioria fosse instintivamente antiocidental, os planos que tinham para os seus países não eram fundamentalmente irreconciliáveis com interesses ocidentais significativos.
Sempre que os árabes se procuraram modernizar, devíamos tê-los incentivado no tipo certo de modernização. Mas isso não aconteceu. Depois, veio o 11 de Setembro, que levou à convicção de que estávamos perante um conflito de civilizações. George Bush perguntava por que nos odiavam. Os neo-conservadores responderam: porque muitos deles vivem em Estados em dissolução, com as vidas constrangidas pela opressão. Dêem-lhes democracia e liberdade e tudo entra nos eixos.
Desde a época das Luzes, os intelectuais foram frequentemente seduzidos pela ilusão de que é possível moldar a natureza humana e de que a ciência política pode resolver problemas com a mesma exactidão matemática das ciências naturais. O marxismo foi a fantasia mais persistente, embora o fascismo e o apartheid também merecessem a menção desonrosa. Houve um único projecto das Luzes que resultou: os EUA. Teve a vantagem de, à partida, os seus teóricos nunca terem estado afastados, pairando no espaço e tempo. Os homens que escreveram a Constituição foram os mesmos que tiveram de lutar com as realidades da governação.
Um herói trágico e destruído
No Iraque, essas realidades foram ignoradas. Tony Blair, um herói trágico, foi traído pela sua boa vontade. Foi conduzido para o Iraque pelo idealismo e pela grandiosidade. Convencido de uma verdade moral superior, considerou que se justificava ignorar questões triviais. Sobretudo, achava que se justificava orientar a guerra a partir do seu sofá, evitando falar com quem pudesse ter sugerido uma análise mínima dos piores cenários. Uma vez autoconvencido, manteve-se longe de tudo o que pudesse ameaçar as suas certezas.
O Iraque virá um dia a funcionar, mas muito mais tarde do que devia, e sobretudo não suficientemente depressa para travar a produção de ondas de jovens irados no interior do islamismo – para quem a Palestina é um espinho infectado – e de regimes ameaçadores. A ameaça está a crescer, enquanto a confiança ocidental vai enfraquecendo. Saddam não tinha, afinal, armas de destruição maciça; mas quanto tempo faltará para que os terroristas as adquiram? Numa altura em que precisamos de um Governo forte, Tony Blair mina a confiança pública. Esperemos que não tenha de se defender perante a comissão do Anjo Gabriel, que tenha de examinar os erros de cálculo que possam levar à Terceira Guerra Mundial.