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Cultura da Europa em perigo

A “Exceção cultural” é essencial para garantir o futuro do cinema europeu, avisam os realizadores, na véspera das negociações entre a UE e os Estados Unidos sobre comércio livre. Sem subsídios e sem ficarem fora do acordo, o cinema europeu deixará de existir, dizem.

Publicado em 14 Junho 2013 às 10:33

Apresentadas no início do ano, as negociações UE-Estados Unidos sobre a criação de uma zona de comércio livre foram recebidas com entusiasmo por alguns, mas também geraram dúvidas. Segundo Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, o acordo previsto vai “ajudar à criação de empregos de grande qualidade e impulsionar o crescimento dos dois lados do Atlântico sem custar dinheiro aos contribuintes. Criará a maior zona de comércio livre do mundo e vai revigorar as relações transatlânticas”. A maior parte dos ministros da Economia da UE são favoráveis ao acordo, o que torna a sua assinatura praticamente certa. Mas, se isso acontecer, a cultura será a sua primeira e maior vítima.

Em 1988, a Comissão Europeia introduziu regras uniformes, conhecidas como “exceção cultural”, segundo as quais os filmes e os trabalhos audiovisuais são tratados de maneira diferente de todos os outros produtos comerciais. Isto significa, entre outras coisas, que podem ser apoiados pelos Estados-membros através de vários mecanismos porque a “promoção da cultura é um dos principais objetivos políticos da UE”. Mas, se o acordo sobre comércio livre entre a UE e os Estados Unidos for aprovado, tanto os filmes como a música serão relegados para um plano de produtos comerciais comuns. O que é que isso significa?

Em primeiro lugar, o encerramento dos institutos nacionais de cinema, que concedem subsídios à maioria das produções cinematográficas europeias (na Polónia é o Instituto Polaco de Cinema, ou PISF). São institutos públicos criados, justamente, para tratarem da proteção cultural. Mas não é o desaparecimento destes institutos, enquanto tais, que gera um problema. É o desaparecimento dos fundos que eles garantem para a promoção cultural, cobrando taxas aos distribuidores de filmes e aos canais de televisão. Sem esses fundos, os filmes de realizadores polacos como Smarzowski, Jakimowski, Krauze ou Holland, ou de realizadores europeus como Haneke, os irmãos Dardenne ou Mungiu, nunca teriam sido feitos.

Diferentes formas de olhar a cultura

Estão igualmente ameaçadas as chamadas quotas europeias, uma legislação segundo a qual as televisões da UE têm de transmitir, pelo menos, 50% de conteúdos europeus. O atual sistema de financiamento público dos media, incluindo uma licença de televisão universal, deixará de ser possível com o acordo previsto. E deixará de haver apoio público para pequenos cinemas que exibem filmes de produção europeia (ou com apoio europeu), ou para autores de música europeus. Segundo a atual lei polaca dos media, as rádios são obrigadas a passar, pelo menos, 33% de conteúdo polaco. Se o acordo de comércio livre se tornar lei, essa obrigatoriedade torna-se nula e sem qualquer efeito.

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Ao contrário do que possa parecer, os bens e serviços culturais não são um assunto marginal nas negociações sobre comércio livre entre a UE e os Estados Unidos. Há muito que Washington pede à Europa que liberalize o seu mercado cultural, mas a UE tem resistido à ideia. “Já hoje, 60% dos filmes exibidos nos cinemas da Polónia ou de França são produções de Hollywood”, diz Jacek Fuksiewicz ao PISF. “O que irá acontecer quando o cinema europeu ficar sem apoio público?”

“Os americanos pensam como gestores comerciais. Nos Estados Unidos, o cinema é uma indústria que, desde a década de 1920, gera mais dinheiro do que qualquer outra. Mas, na Europa, não vemos a cultura dessa maneira”, acrescenta Dariusz Jabłoński, presidente da Academia Polaca de Cinema.

É tempo de decidir

Mais de sete mil realizadores de cinema, dos quais cerca de 200 polacos, assinaram uma carta-aberta de apoio à exceção cultural, incluindo nomes de primeiro plano como Michael Haneke, Pedro Almodóvar, Ken Loach, Cristian Mungiu, os irmãos Dardenne, Andrzej Wajda, Agnieszka Holland, Krzysztof Zanussi, ou Jerzy Skolimowski. “A Europa pode perder o direito de defender a sua própria cultura. Nada justifica tal coisa e tudo pesa contra”, escreveram. Durante o Festival de Cinema de Cannes os seus argumentos foram apoiados por Steven Spielberg e pelo fundador da Miramax e produtor independente de Nova Iorque, Harvey Weinstein.

Mas enquanto este lóbi convenceu o Parlamento Europeu a declarar o seu apoio à exceção cultural, a verdade é que as negociações são feitas pela Comissão. O comissário para o Comércio, Karel De Gucht, garantiu, a 17 de maio, que o acordo previsto não afetará o apoio público à produção cultural e audiovisual na UE, mas nem toda a gente parece ter ficado convencida. “São apenas comentários avulso sem qualquer efeito legal”, declarou o presidente do PISF, Agnieszka Odorowicz. Ao que parece, o mandato para negociar pedido pela Comissão é demasiado geral e amplo. De certa forma, a Comissão está a pedir um mandato em branco, o que pode ser perigoso para a Polónia. É bom recordarmos que a cinematografia polaca não goza de isenções fiscais (ao contrário do que acontece nos Estados Unidos), que está sujeita a um IVA de 23% (ao contrário do que acontece nos Estados Unidos) e que só o orçamento de Avatar é igual a nove anos do total de apoio público para a produção de cinema polaco”.

Há uns dias, um grupo de realizadores europeus – Costa Costa-Gavras, Mungiu e Jabłoński, entre outros – encontrou-se com o presidente da Comissão Europeia, José Durão Barroso, em Estrasburgo. Tudo ficará decidido na sexta-feira, 14 de junho, quando os governos dos Estados-membros da UE decidirem o mandato negocial da Comissão.

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