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“Dalligate” ganha contornos de romance policial

Uma semana após a demissão do comissário europeu John Dalli, continuam a crescer as suspeitas de conspiração contra ele, numa altura em que se preparava para apresentar um texto de grande severidade em relação aos produtos de tabaco. A um alegado tráfico de influências, acrescenta-se um estranho caso de assalto à sede dos ativistas antitabagistas.

Publicado em 26 Outubro 2012 às 14:23

É um enredo digno de John Le Carré, que pode tornar-se uma fonte de embaraço para o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, pois envolve grupos de pressão, "big money" e agora também manobras de bastidores.

Segundo um inquérito do OLAF (Organismo europeu de Luta Antifraude), um tal Zammit Silvio, empresário maltês, teria proposto à Swedish Match, fabricante sueco de charutos e tabaco de mascar, que interviesse numa modificação do projeto de diretiva em curso sobre o tabaco, em troca de um envelope com... €60 milhões. O relatório do OLAF foi enviado a Durão Barroso em 15 de outubro. A 16, a Comissão Europeia anunciou em comunicado de imprensa que o comissário John Dalli, responsável pela legislação sobre tabaco, "apresentou a demissão", no seguimento desta investigação. Em 17 de outubro, a Comissão Europeia abriu o gabinete de imprensa – facto de enorme raridade – ao diretor-geral do OLAF, Giovanni Kessler, para fornecer pormenores sobre esta investigação aos correspondentes europeus.

Suspensão da diretiva por tempo indefinido

Como consequência imediata desta demissão, a adoção do projeto de diretiva sobre os produtos do tabaco pela Comissão Europeia foi suspensa por tempo indeterminado, por falta de um comissário que assuma a sua "responsabilidade política". Ora, o texto devia entrar, em 22 de outubro, na fase final de preparação, para adoção nas semanas seguintes.

Imediatamente, as organizações europeias de luta contra o tabaco vieram a terreiro. O SmokeFree Partnership, um grupo de pressão antitabaco, viu na renúncia do comissário "um facto muito desajustado", nas palavras da sua diretora, Florence Berteletti Kemp. A saída da diretiva vem sendo protelada, mês após mês, há mais de um ano. Os antitabagistas veem esfumar-se as possibilidades de ser adotado ainda durante o mandato que termina em 2014. Após a aprovação do projeto pelos comissários, há de facto um longo processo legislativo a percorrer, em Conselho de Ministros e no Parlamento Europeu, antes da votação final.

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Vários computadores desaparecidos

Em 18 de outubro, os funcionários da Smokefree Partnership (SFP) tiveram uma surpresa desagradável, quando entraram na Rue de Trêves, 49-51, no coração do bairro europeu: os seus escritórios tinham sido revistados durante a noite. Vários computadores desapareceram, as pastas foram vasculhadas.

Das duas dezenas de organizações com sede no edifício, apenas três foram assaltadas: a do SFP, a da European Public Health Association e a da European Respiratory Society. São precisamente as ONG que estão em guerra aberta contra as multinacionais do tabaco, que acusam de "bloquear, alterar e adiar" a nova legislação, para citar o título de um relatório de cerca de cem páginas sobre as pressões da indústria do tabaco, encomendado pela SFP e várias organizações de luta contra o cancro.

De acordo com a investigação preliminar, os assaltantes conseguiram contornar o sistema de vigilância. Terão penetrado no edifício de oito andares a partir do telhado, descendo pela fachada, e entrado pelas varandas, saindo pela porta da entrada com nada menos de uma dúzia de computadores portáteis debaixo do braço.

Com este assalto, o escândalo político eclodiu. Depois do anúncio da sua demissão espontânea, o ex-comissário John Dalli comentou que foi levado a sair. "A porta estava aberta e, ou eu saía por minha iniciativa, ou era forçado a fazê-lo", contou esta semana no site euractiv.com. Para a Comissão, esta demissão "foi apresentada" por John Dalli ao presidente Barroso "na presença de testemunhas".

Queixa por tentativa de suborno

Nos últimos meses, o projeto de diretiva foi bloqueado várias vezes, nomeadamente a pedido do Serviço Jurídico e do Secretariado-Geral da Comissão, o que provocou a ira de diversos países, nomeadamente a Irlanda, que está tradicionalmente na vanguarda da luta contra o tabaco.

John Dalli avisou, em abril de 2012, que seria de uma grande firmeza, para gáudio das organizações antitabagistas. Segundo raras fugas de informação, a proposta previa a manutenção da proibição de tabaco de mascar produzido pela sueca Swedish Match, que só é, presentemente, autorizado na Suécia, e com ressalvas. Aliada desde 2009 ao grupo Philip Morris, a Swedish Match está na origem de uma queixa contra o comissário Dalli. Este tencionava também contrariar as estratégias de marketing dos gigantes do tabaco, que jogam a cartada das embalagens de formas originais para atrair clientes, nomeadamente do sexo feminino. O projeto iria finalmente impor a "embalagem despojada", ou seja, uma embalagem neutra e pouco atraente, e a proibição de escaparates visíveis em tabacarias ou quiosques.

Em maio de 2012, a Swedish Match apresentou queixa por tentativa de suborno [de Dalli]. O OLAF, cujos inquéritos se arrastam habitualmente por vários anos, tratou-a com uma celeridade invulgar, tendo o relatório final sido formalmente apresentado ao presidente da Comissão cinco meses depois. Não se trata de um documento final e não determina "nenhuma prova da participação" do comissário, segundo declaração da Comissão, em 16 de outubro.

Um porta-voz garantiu, na quarta-feira, que a Comissão irá apresentar o projeto de diretiva "nas próximas semanas", mas será necessário aguardar a nomeação do sucessor de John Dalli. Para os ativistas antitabaco, a probabilidade de o texto chegar ao fim do percurso legislativo antes do final do mandato da Comissão e do Parlamento são mais remotas que nunca. Se transitar para o próximo mandato, a indústria do tabaco ganha pelo menos um ano antes da aplicação das previstas medidas restritivas. Um ano mais, já que, inicialmente, o projeto estava anunciado para o verão... de 2011.

Diretiva antitabaco

Bruxelas quer evitar que grandes tabaqueiras tirem partido do “Dalligate”

O comissário responsável pelas Relações Interinstitucionais e da Administração, o eslovaco Maroš Ševčovič, foi encarregado, de urgência, de assegurar interinamente a pasta de John Dalli na Saúde e Política dos Consumidores enquanto espera que Malta designe o seu substituto, o que deverá acontecer até meados de novembro. Ševčovič disse ao diário de Bratislava SME que deverá garantir que a nova diretiva sobre o tabaco em que Dalli estava a trabalhar “seja adotada o mais depressa possível”. Mais restritiva que as anteriores, entre outras coisas, prevê avisos mais severos nos maços de cigarros e limitações para os cigarros aromáticos e eletrónicos.

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