Espírito europeu, ainda aí estás?

O declínio da Europa é uma ideia muito em voga, reforçada pelos maus indicadores económicos e demográficos. Mas uma civilização é também julgada pela sua força criativa, lembra um intelectual francês.

Publicado em 10 Setembro 2010 às 15:16

Será que chegámos, como a civilização romana da Antiguidade Tardia, ao último capítulo da nossa gloriosa (e violenta) História? Hedonistas e cínicos, sem acreditar mais nas nossas leis e em nenhum Deus, rindo-nos de tudo, menos de nós próprios, incapazes de nos projetarmos no futuro, amolecidos pelo conforto, superficiais e mimados, será que merecemos ser suplantados por outros povos, mais jovens, mais ambiciosos, mais fortes? A analogia entre a situação dos europeus de hoje e a decadência do Império Romano é tentadora… E, no entanto, desconfiamos do pathos fácil da decadência e das posturas reacionárias. Para esboçar as questões filosóficas de uma tal situação, formulamos três hipóteses.

Hipótese nº 1: O mito do declínio europeu é tão velho como a própria História da Europa

Homero viveu no século VIII a. C., mas louva nas suas epopeias uma época muito anterior: a Guerra de Troia situa-se à volta de 1200 antes da nossa era. À semelhança da maior parte dos seus contemporâneos, Homero fantasiava sobre o esplendor perdido da civilização Micénica (1600/1200 a. C.), destruída pelos Dórios, o povo invasor vindo do Norte. Se as personagens de Homero – Ulisses, Aquiles, Agamémnon entre outros… – possuem tão nobres qualidades, é por fazerem parte de uma humanidade superior. Homero é o primeiro historiador e, depois dele, o mito do declínio passará a ser uma questão incontornável, uma obsessão da cultura do Velho Continente.

No final da Idade Média, pelo punho de Dante ou Maquiavel, ressurge a nostalgia da Idade do Ouro, mas desta vez é o poder do Império Romano que se lamenta. No Século das Luzes, Montesquieu interessa-se igualmente pela decadência da civilização Romana, mas para criticar os excessos de autoritarismo dos Césares e, indiretamente, do império.

Mais perto de nós, a seguir à I Guerra Mundial, Oswald Spengler e Arnold J. Toynbee consideram que o ocidente está doente, ou prestes a cavar a sua própria sepultura; estes dois historiadores perseguem o ímpeto de morte que destrói secretamente a nossa civilização. De Homero a Arnold J. Toynbee, todos os autores referem a grandiosidade perdida e anunciam a catástrofe, mas com o único objetivo de encontrar as forças vivas que permitam louvar de novo a História.

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Hipótese n° 2: O mito do declínio inscreve-se hoje na linguagem formal dos números e da Economia

É a grande novidade contemporânea. Nos dias de hoje, não é um escritor genial que nos dá a imagem do nosso enfraquecimento, mas simplesmente tabelas de números áridos produzidas pelos institutos de estatísticas, o Eurostat ou o Banco Mundial. Os números passam então a ter uma eloquência muito própria perante a qual é difícil ficar insensível.

Hoje em dia, os 500 mil milhões de habitantes da União Europeia (UE) não representam mais de 7,3% da população mundial. É nela que se regista a taxa de crescimento demográfico mais baixa do mundo (0,05% na Alemanha, 0,7% em Itália, em 2008) e de envelhecimento. O crescimento económico também é baixo: 0,2% em média, desde o início de 2010, na maioria dos 27 países da UE, – 4,2% em 2009 (comparativamente, a China regista um crescimento na ordem dos 10%, o Brasil, 8% e a Índia, 6,5%). Em 2008, 17% da população europeia vivia no limiar da pobreza, um valor que atinge os 20% entre os mais novos…

A UE deixou praticamente de ter indústrias no seu território e os seus mais belos bocados vão caindo aos poucos nas mãos de investidores estrangeiros.

Aplicar às nações uma grelha de análise estritamente orçamental e contabilística é passar ao lado de outras dimensões, como a qualidade de vida, o acesso à educação e aos cuidados médicos, e existência de um Estado de Direito, de um sistema judiciário não corrupto, de infraestruturas de transportes, etc.

Imaginamos que, antes de nascermos, as coisas se passam como outrora as imaginou Platão, ao dizer que as almas vêm lentamente ao encontro do corpo. Somos uma dessas almas que vai nascer. Ao longo da nossa trajetória astral em direção à encarnação, somos interpelados por um anjo que nos dá a escolher: Pode nascer na Índia, na China, no Brasil, na Indonésia, ou na Europa. Qual destes destinos prefere? Qual será, a seu ver, o local onde irá ter mais oportunidade de viver livremente e com saúde, sem pensar na violência, seja ela propagada pelo Estado, ou reinante na esfera social? Onde os seus sonhos poderão concretizar-se? Já escolheu? Não ficou completamente curado da Europa?

Hipótese n° 3: A redução do mito do declínio europeu a um problema económico é, em si própria, um sinal inquietante de declínio

São as últimas páginas de O Declínio do Ocidente, de Spengler, publicado em 1918, que nos guiam: "O pensamento económico e a atividade económica são um lado da vida", afirma, "e cada vida económica é a expressão de uma vida psíquica". Dito de outra forma, a prosperidade ou o marasmo de uma economia mais não fazem do que traduzir um certo estado da cultura e do espírito. Um ano mais tarde, em 1919, Paul Valéry reforça a ideia num texto intitulado A Crise do Espírito, cuja primeira frase ficou famosa: "Nós, as civilizações, sabemos neste momento que somos mortais". Não conhecemos tão bem a argumentação seguinte, inacreditável. "A crise económica", explica Paul Valéry, "perante o espetáculo do Velho Continente arrasado pela guerra, é visível em toda a sua força; mas a crise intelectual, mais subtil e que, pela sua própria natureza, assume os aspetos mais enganadores (tudo se passa no verdadeiro reino da dissimulação), essa crise dificilmente deixa transparecer a sua verdadeira natureza, a sua fase”. Cuidado para não se confundir força e quantidade, previne Paul Valéry!

A classificação das regiões do mundo segundo critérios estatísticos – população, superfície, matérias-primas, rendimentos, etc. – arrisca-se a fazer-nos esquecer que as civilizações produziram uma obra histórica notável – o Antigo Egito, o século de Péricles, a Europa do Iluminismo – unicamente por terem sido criativas, por terem sido capazes de promover as artes e a ciência, porque a vida do espírito era intensa.

Em 1935-1936, o filósofo alemão Edmund Husserl escreveu um texto que fez história, intitulado A crise da ciência europeia como expressão da crise radical da vida na humanidade europeia. Husserl afirma que foi o lugar eminente atribuído à razão que permitiu o esplendor da Europa. O projeto dos gregos de compreender a totalidade dos fenómenos do mundo constitui, segundo Husserl, o trampolim inicial da nossa civilização. É em nome da razão que se irá desenvolver a Ciência na Idade Moderna, que o Iluminismo irá sacudir o jugo do Antigo Regime. Ora, "a visão global do mundo que é a do Homem Moderno deixou-se determinar e cegar, na segunda metade do século XIX, pelas ciências positivas e pela ‘prosperidade’ que elas nos ofereciam", constata Husserl.

Ao separarmos as ciências do Homem e as ciências da Natureza, no século XIX, cometemos um erro grave, visto termos anulado as intenções do projeto grego. A Filosofia, a Psicologia, a Sociologia, a Ciência Política foram rejeitadas pela subjetividade, pela Literatura. A Razão passou então a aplicar-se apenas às ciências exatas e já não se exprime a não ser através de linguagens matemáticas. Mas as matemáticas não conseguem responder às nossas angústias, nem oferecer-nos um destino! Ao reduzir a Razão a uma calculadora, a Humanidade europeia perdeu o seu projeto fundador. De certa forma, auto dissolveu-se. "Simples ciências de factos formam uma simples humanidade de factos." E isto leva-nos à nossa conclusão. O facto de não sermos capazes de contar hoje o declínio da Europa de outrora a não ser com dados estatísticos é talvez ainda mais preocupante que os referidos dados estatísticos porque é a prova de que deixámos algures pelo caminho o nosso espírito.

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