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Primeiro-ministro italiano Mario Monti, primeiro-ministro grego Lucas Papademos, chanceler alemã Angela Merkel, Presidente francês Nicolas Sarkozy e presidente do BCE Mario Draghi.

Europa diz adeus à solidariedade

A solidariedade que sempre esteve no centro do projeto europeu baseia-se em interesses realistas e práticos. Para conseguir sobreviver à crise atual, a União Europeia precisa de reaprender este princípio simples.

Publicado em 24 Fevereiro 2012 às 16:19
Primeiro-ministro italiano Mario Monti, primeiro-ministro grego Lucas Papademos, chanceler alemã Angela Merkel, Presidente francês Nicolas Sarkozy e presidente do BCE Mario Draghi.

Há palavras que são propriedade dos europeus continentais. Não é habitual ouvir muitos britânicos ou norte-americanas falarem de "solidariedade". A expressão pertence ao domínio do consensual empastado (para os espíritos anglo-saxónicos) do capitalismo social de mercado e aos profetas da unidade europeia. O que aconteceu, nos últimos tempos, foi que a solidariedade se diluiu, o que explica que o euro, e a União Europeia, estejam a enfrentar tantas dificuldades.

Todas as semanas, um novo penso rápido. O acordo sobre o apoio à Grécia serviu para ganhar algum tempo. O importante é que a ferida foi cauterizada – ou, pelo menos, é isso que somos levados a pensar. Mais uma vez. No entanto, deveria ser absolutamente óbvio para todos que, em comparação com outras coisas mais complexas, o último resgate é marginal.

Para a Grécia evitar um colapso económico e social catastrófico, são precisas duas coisas. Quer se mantenha na zona euro ou saia dela. A primeira é a vontade política suficiente da Grécia para reformar o Estado e a economia, de forma radical; a segunda é uma disponibilidade recíproca dos outros europeus para pagar uma pesada fatura pelos fracassos e fraudes dos anteriores governos gregos.

A questão pertinente é se esse pacto será possível. Os auspícios não são animadores. Por trás das trocas de termos abusivos que caracterizam a relação da Grécia com os seus parceiros da zona euro, encontra-se uma total quebra de confiança. Muitos europeus – e não estou a falar só dos alemães – não acreditam que os políticos de Atenas cumpram as suas promessas. Muitos gregos pensam que as duras medidas de austeridade exigidas em troca da redução da dívida foram concebidas mais para os castigar do que para lhes permitir a recuperação. Um observador justo diria provavelmente que os dois lados têm razão.

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Portugal foi lento na modernização

De certa maneira, a Grécia pode ser considerada como uma exceção. É um país pequeno e é um país diferente. Em maior ou menor grau, os outros países da periferia da zona euro aproveitaram a oportunidade que serem membros da UE representava, para se tornarem Estados europeus modernos. Apesar de todos os seus problemas atuais, a Irlanda transformou-se num país autoconfiante, liberto da obsessão histórica com a Grã-Bretanha. A Espanha aderiu com entusiasmo à modernização. Os políticos gregos nunca se preocuparam realmente com isso. Vista de Atenas, a UE foi mais uma fonte de financiamentos do que de inspiração política.

Portugal foi lento na modernização. A sua economia, tal como a da Grécia, é uma enorme confusão. Mas os seus políticos mostram uma comprovada vontade de recuperar o tempo perdido. Por isso, a reserva de confiança não se esgotou. Os decisores políticos de Bruxelas e de Berlim dir-vos-ão que colocam a Grécia e Portugal em categorias muitos diferentes.

Traçar essa linha de divisão não é tão fácil como esses políticos e funcionários gostariam que fosse. A Grécia assumiu tanta importância – quando, afinal, é responsável por apenas alguns pontos percentuais da produção da zona euro – porque os decisores políticos lhe permitiram ter um peso excessivo sobre o futuro da zona euro. O contágio não decorre da economia: é, sim, um produto da política.

Se os mercados tivessem sido convencidos de que a Grécia era realmente uma exceção, o país teria sido submetido a quarentena há já algum tempo. Em vez disso, foi encarado como um teste a uma intenção política mais vasta – em última análise, um teste à solidariedade da zona euro.

Solidariedade ligada ao altruísmo arrogante

Como salientava recentemente um criterioso estudo do grupo de reflexão "Notre Europe", com sede em Paris, a solidariedade tem duas variantes. Existe o acordo de transação simples – a apólice de seguro comum contra a possibilidade desta ou daquela catástrofe – e existe o interesse próprio esclarecido que leva os governos a reconhecer objetivos nacionais numa estratégia de integração partilhada e sustentada.

A União Europeia foi construída com base no último. Há mais ou menos 60 anos, era relativamente fácil. Os horrores de duas guerras mundiais, a ameaça comum representada pela União Soviética e o estímulo representado pelos EUA conferiam uma lógica irresistível àquilo que os fundadores chamavam o processo de construção europeia.

A solidariedade não era um conceito sentimentalista de federalistas sonhadores. Era parte de cálculos de interesses práticos. Permitia que a França reivindicasse a liderança política, que a Alemanha reconstruísse a sua economia e mantivesse viva a perspetiva de reunificação, que a Itália pudesse aspirar à modernização e que os países mais pequenos pudessem ter voz nos assuntos do continente. Claro que a solidariedade também tinha a ver com o altruísmo arrogante que levava as pessoas a ter uma sensação de conforto mas, à partida, tudo tinha a ver com interesses próprios.

Preservar a paz europeia

A moeda única foi o culminar dessa aliança de interesses nacionais e mútuos – a convicção de que os futuros económicos e políticos dos seus membros estavam tão intrinsecamente associados que a partilha sem precedentes da soberania valia a pena. O grande contratempo foi o projeto ter sido lançado precisamente no momento em que os outros impulsos no sentido da solidariedade – memórias da Segunda Guerra Mundial, a ameaça existencial do comunismo, a Alemanha dividida – começavam a esmorecer.

Continua a haver muitos motivos pelos quais os países europeus ficam em melhor situação, se trabalharem em conjunto. O mais óbvio é a necessidade de ter voz num mundo que, cada vez mais, pertence a terceiros. A Alemanha, a França, o Reino Unido são demasiado pequenos para esse mundo. Mas, por mais importantes que sejam, nenhuma dessas ambições – influenciar as regras do comércio, fazer face às alterações climáticas, garantir o fornecimento de energia ou promover a democracia e a estabilidade – se afigura tão urgente e imperiosa como preservar a paz europeia.

Na medida em que tem sido evidente na crise do euro, essa solidariedade pertence à variante de transação, de resto zero – os países credores só farão isto, se os devedores fizerem aquilo. Poderá dizer-se que isso é melhor que nada. Até agora, tem assegurado o andamento normal das coisas. Mas nunca poderá explicar devidamente o motivo por que os contribuintes do Norte devem pagar as dívidas do Sul nem o motivo por que os europeus do Sul devem encarar as reformas dolorosas como uma oportunidade e não como um castigo. Isso requer o outro tipo de solidariedade.

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