Fraude da carne de cavalo é um problema europeu

O escândalo da carne de cavalo assumiu proporções europeias. Ao mesmo tempo que os países europeus procuram culpar-se uns aos outros, ignoram o problema subjacente: o facto de a crise económica estar a fazer com que as famílias de rendimentos mais baixos estejam cada vez mais dependentes de carne barata.

Publicado em 13 Fevereiro 2013 às 12:59

Começou por ser um problema na Irlanda e no Reino Unido: carne de cavalo nos hambúrgueres de carne bovina em dois dos países que, entre todos, mais amam os cavalos. Desde aí, cresceu até se tornar num escândalo alimentar a nível europeu. Porque, embora a carne de cavalo tenha aparecido em produtos postos à venda em prateleiras irlandesas e britânicas, a sua origem pode muito bem ter estado nos matadouros de outros locais da Europa.

Tal como a bactéria e.coli em 2011, também este escândalo desencadeou um frenético ataque de apontar de dedo. A indústria europeia da carne envolve milhares de milhões de euros por ano e nenhum país quer arcar com as culpas. A Irlanda deixou implícito que a culpa era da Polónia, país que negou qualquer irregularidade. A Suécia tem procurado culpar a França. A França suspeita que Chipre, Roménia e Holanda são os países onde teve lugar a rotulagem errada dos lotes de carne. A carne chegou às fábricas de transformação irlandesas e britânicas, sendo distribuída por empresas como a Findus, que vende refeições ultracongeladas de carne no Reino Unido, Irlanda, Suécia, Noruega, Finlândia e França.

Cavalos sem identificação nas orelhas

“Este problema abrange toda a Europa”, avisou, na última sexta-feira, Alan Reilly, da Irish Food Services Authority. Ontem, o ministro britânico da Agricultura, Owen Paterson, falou de “uma conspiração criminosa internacional”.

Não há nada de mau para a saúde na carne de cavalo por si só. No entanto, a razão para tanto alvoroço nos países que adoram cavalos não é simplesmente porque, como disse Reilly no mês passado, “comer carne de cavalo não faz parte da nossa cultura”.

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O facto de ainda não ter sido possível atribuir a carne a um agricultor ou a um matadouro é um sério problema. Pior ainda, ninguém sabe como é que ela foi parar aos produtos ultracongelados ou há quanto tempo isso estava a acontecer.

Estas são as perguntas a que agora os governos, polícias e autoridades alimentares de vários países estão a tentar responder. São questões importantes porque a carne de cavalo pode conter fenilbutazona, um medicamento usado para tratar doenças nas articulações e cólicas nos cavalos. A fenilbutazona não pode ser administrada em animais destinados ao consumo humano porque, em casos raros, pode causar anemia e leucemia. Por causa da crise económica o número de cavalos abatidos tem vindo a aumentar e, suspeita-se agora, nem sempre em matadouros oficiais. Além disso, ao contrário do que acontece com bovinos e ovinos, os cavalos não têm marcação de destino nas orelhas. Por isso, nem sempre é claro se foram ou não criados para o comércio alimentar.                                

Preço da comida subiu 26% no Reino Unido

“Se a Findus e a Tesco não conseguem ter uma linha de abastecimento segura para os seus produtos, então, temos um grave problema neste setor do comércio”, disse
Alan Reilly, na sexta-feira. Segundo as autoridades alimentares britânicas e irlandesas, a responsabilidade de verificação da carne cabe aos supermercados e aos fabricantes. Na próxima sexta-feira são esperados resultados de testes a mais refeições ultracongeladas. O ministro britânico da Agricultura já disse que espera “mais más notícias”.

“Mas o verdadeiro problema é: porque é que havia carne de cavalo nos hambúrgueres de vaca?”, pergunta Elizabeth Dowler, professora de Alimentação e Política Social na Universidade de Warwick. Respondendo à sua própria questão, afirma: “Porque o preço tem que continuar tão baixo quanto possível”. Os hambúrgueres em questão custam 13 pences (€15 cêntimos) cada um, no Testo e no Iceland, o preço final para o consumidor da lasanha congelada da Findus custa 1,60 libras (€1,86 por 453 gramas).

No Reino Unido, o preço da comida aumentou 26% nos últimos cinco anos. Apesar de, na Irlanda, os preços não terem subido tanto, a crise trouxe consigo um severo decréscimo do poder de compra.

“O problema tem a ver com a pobreza”

E o preço da carne de vaca também aumentou. Hoje de manhã, o quilo da carne de vaca no mercado de carne de Smithfield, em Londres, custava, no mínimo, 7,70 libras (€9). Em fevereiro de 2007, o preço era de 5,60 libras o quilo. “Para tornar a carne mais barata, os animais tomam suplementos e não com boas proteínas”, diz a professora Dowler. E a carne de cavalo é um quinto mais barata do que a carne de vaca. A professora tem sérias dúvidas de que tenha sido usada “carne de boa qualidade”.

“Isto tem um grande impacto em quem tem baixos rendimentos e muitos filhos. As pessoas nesta situação não têm dinheiro para comprar hambúrgueres de melhor qualidade ou para irem ao talho e mandarem picar a carne. São pessoas que dependem das promoções especiais do género leve 3 e pague 2”, diz Elizabeth Dowler. “O problema tem a ver com a pobreza.”

A professora acredita que esses consumidores têm consciência daquilo que estão a comprar. “Todos os meus estudos junto de famílias de baixos rendimentos mostram que as pessoas sabem que ‘barato’ é apenas um ‘incentivo’, mesmo antes da crise. Mas, na maior parte das vezes, não têm outra opção.” Do que esta professora duvida, isso sim, é que os consumidores tenham consciência de como a comida é produzida. “É fácil recorrermos a anedotas sobre crianças que pensam que o leite vem do pacote e não das vacas. Mas sabemos nós, realmente, como funciona a indústria do leite?”

Martin McAdam, fornecedor de carne que representa a ligação entre matadouros e fabricantes de hambúrgueres, revelou os seus métodos de trabalho à cadeia de televisão irlandesa RTE. A crescente procura de carne cada vez mais barata obrigou-o a procurar carne fora da Irlanda. Virou-se para a Polónia, Bélgica e Holanda, contou ele – enquanto a Irlanda é o primeiro exportador de carne de vaca da Europa. A diferença era “de cinco a dez mil euros por camião”. Disse que ignorava que aquela carne era de cavalo.

O National Union of Farmers, a associação britânica de agricultores, acusa a indústria de transformação de carne e os fabricantes de refeições cozinhadas, por quererem obter carne muito barata. Desde a crise das vacas loucas e da febre aftosa no Reino Unido (e os escândalo das dioxinas na Irlanda em 2008, que obrigou ao abate de centenas de milhares de porcos), a qualidade da carne britânica melhorou, afirma Peter Kendall, presidente da associação. Isso traduziu-se numa subida dos preços. “É um desafio para os comerciantes. Não podem continuar a diminuir os preços sem cortarem na qualidade.”

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