O porto da cidade numa noite de verão

Malmö tem a alma ferida

Há vários meses que um atirador solitário semeia a inquietação nas ruas de Malmö. Estes acontecimentos chamam a atenção para uma cidade em mudança que luta para se livrar dos seus complexos e da sua imagem negativa.

Publicado em 5 Novembro 2010 às 13:11
Olof Werngren  | O porto da cidade numa noite de verão

As informações que, este ano, chegam de Malmö estão envoltas numa espiral de confusão. Há já algum tempo que Malmö herdou a imagem de uma cidade onde as pessoas disparam umas contra as outras com muita frequência – subentenda-se: a delinquência dos bandos e dos imigrantes está a degenerar. E depois, como um golpe estranho de varinha mágica, a perspetiva mudou completamente e passou a falar-se da possibilidade de um assassino racista imitando o “assassino do laser de Estocolmo” [que fez as manchetes dos jornais no início dos anos de 1990]. Do dia para a noite, os culpados, os imigrantes tornaram-se vítimas. Mas o mal já está feito: na retina coletiva ficou impressa a imagem de uma cidade que incarna o falhanço da integração dos imigrantes.

Uma nódoa no paraíso sueco

Cada vez mais, Malmö destoa como uma nódoa no paraíso sueco. No entanto, tempos houve em que a cidade foi a Meca do modernismo, uma cidade pioneira para várias gerações de arquitetos do modelo sueco: a ponte de Øresund, o arranha-céus "Turning Torso", a cidade era um estaleiro permanente. Depois, em 2004, aconteceu: Steve Harrigan, da Fox News, enviou para os Estados Unidos uma reportagem que abria com estas palavras: “As autoridades suecas têm muito que fazer em Malmö, onde a imigração muçulmana explodiu (...). Os imigrantes estão furiosos e muitos pedem contas ao país que os acolheu (...). Um quarto dos habitantes da cidade é muçulmano”. A reportagem refletia o costumado zelo da cadeia de televisão americana em apresentar a Europa como uma vítima indefesa da islamização. “Londristão” ou “Hamburgistão” são termos genéricos para evocar uma Europa que serve de asilo aos terroristas que querem planear atentados contra os Estados Unidos. A reportagem da Fox News deu início a um verdadeiro frenesim mediático à volta de Malmö. Toda a gente ia ao bairro Rosengård filmar a revolta dos jovens e mostrar a exclusão. Depois, os Democratas da Suécia [extrema-direita] conseguiram vários êxitos eleitorais [e entraram no Parlamente nas eleições de setembro]. E hoje, com a chegada de um novo “assassino do laser”, deu-se a explosão.

“Aconteceram muitas coisas em Malmö nestes últimos dez anos, muitas delas positivas”, diz Mikael Stigendal, professor de sociologia na universidade de Malmö e que há mais de 20 anos estuda a cidade. Comparada com outras cidades que Mikael Stigendal visitou e estudou, como Copenhaga e Liverpool, Malmö defende-se bastante bem. O professor, tal como todas as outras pessoas com quem também falei, reconhece a existência de problemas complicados tais como uma pobreza infantil endémica (um terço das crianças de Malmö crescem na pobreza, contra 5% do conjunto do território sueco) e fracos resultados escolares (cerca de 25% dos alunos que saíram do 9º ano, no verão passado, não conseguiram o nível de resultados necessário para entrarem no 10º ano, contra 10 ou 11% à escala nacional).

Tudo se mistura, arquitetura, homens e ambientes

Mas quando qualquer coisa corre mesmo muito mal em Malmö, as instituições estão imediatamente presentes. Mikael Stigendal cita o exemplo da empresa municipal imobiliária MKB [o maior proprietário de arrendamento para habitação de Malmö], cuja missão é colocar dentro das regras os “apartamentos do horror” que foram mostrados na comunicação social há alguns anos. Os comentários depreciativos sobre a cidade suscitaram reações, em particular na redação cultural do Sydsvenskan [o grande diário do sul da Suécia]. Nos últimos tempos, Rakel Chukri, a responsável pelas páginas culturais, e o cronista Per Svensson têm-se esforçado por sublinhar os sucessos da cidade nas últimas décadas: antiga vítima da crise industrial, marcada por uma ausência total de confiança, Malmö emergiu da bruma provinciana para se tornar uma cidade de conhecimento extrovertida, uma cidade de abertura multicultural para a Europa e para o mundo. Do décimo terceiro andar da sede do Sydsvenskan, a vista abarca toda a cidade de Malmö, incluindo as incomensuráveis docas saídas das trevas e do declínio para se transformarem num alegre caos ou a universidade, os apartamentos novos e as empresas, lado a lado com os gigantescos cargueiros vindos de todo o mundo. É impressionante ver até que ponto tudo se mistura, arquitetura, homens e ambientes. As fronteiras entre os diferentes perímetros estão em vias de serem apagadas. Estocolmo e Gotemburgo, pelo contrário, construíram bolhas, com um intervalo entre os homens e as esferas.

Newsletter em português

O estigma de Malmö

Existe um ódio contra Malmö? Se sim, de onde vem? “Tenho colegas em Estocolmo que estão convencidos que é perigoso passear na cidade, que as pessoas nos atiram pedras à cabeça”, conta Rakel Chukri levantando os olhos para o céu, antes de acrescentar, num tom firme: “As pessoas têm uma fixação por Malmö. Ninguém perguntou o que é que estava errado em Estocolmo quando o ‘assassino do laser’ andava por lá desenfreado. Nessa época, toda a gente falava simplesmente ‘da Suécia’”. “As pessoas adoram distopias”, afirma Per Svensson. “E, de certa maneira, Malmö tornou-se a cidade com distopia da extrema-direita.”

Do dia para a noite, quando um louco solitário, de bicicleta, começou a disparar contra as pessoas, centenas de milhares de habitantes de Malmö passaram a fazer figura de tolos, na comunicação social. Mais cedo ou mais tarde, alguém colocará as perguntas certas. O que é feito do sistema de cuidados psiquiátricos? O que é feito dos apelos da polícia para um endurecimento da legislação sobre porte de armas e o reforço dos seus meios? E a necessidade premente de escolaridade? Então, talvez a vergonha se ponha a caminho do norte, para ir ter com esse mesmo Governo que julgou pertinente enviar o condescendente ministro da Integração, Erik Ullenhag, a Malmö.

Última hora: A 7 de novembro, a polícia de Malmö anunciou a detenção de um sueco de 38 anos suspeito de ter morto uma pessoa e ferido outras sete.

Categorias
Tags

É uma organização jornalística, uma empresa, uma associação ou uma fundação? Consulte os nossos serviços editoriais e de tradução por medida.

Apoie o jornalismo europeu independente.

A democracia europeia precisa de meios de comunicação social independentes. O Voxeurop precisa de si. Junte-se à nossa comunidade!

Sobre o mesmo tópico