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Não há privacidade sem delatores

O escândalo PRISM revelou que a NSA, em conluio com empresas privadas, teve carta-branca para atropelar a privacidade, mesmo na Europa. Como as instituições democráticas não nos conseguem proteger, valham-nos os promotores de fugas de informação que, ao menos, denunciam publicamente estes abusos.

Publicado em 13 Junho 2013 às 11:49

Não há que ter preocupações com o “cumprimento da lei”, asseguraram políticos norte-americanos e britânicos, após a revelação da vigilância global pelos Estados Unidos dos telefones, mensagens de correio eletrónico e tráfego de Internet. A recolha de dados eletrónicos existe mas é “muito bem circunscrita”, insistiu Barack Obama. O comportamento dos serviços secretos britânicos foi, segundo David Cameron, “apropriado e adequado”.

Na realidade, graças ao promotor da fuga de informação, Edward Snowden, sabemos agora que a Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA) recolhe 200 mil milhões de informações por mês, vasculhando os registos dos telemóveis de mais de 200 milhões de americanos e deitando mão a uma enorme quantidade de mensagens de correio eletrónico, pesquisas na rede e conversas ao vivo entre utilizadores de computadores, das maiores empresas de Internet utilizando um programa chamado PRISM.

Naturalmente, a NSA tem partilhado algumas das suas descobertas sobre cidadãos do Reino Unido com os seus amigos do GDHQ (agência britânica de vigilância das telecomunicações), poupando as autoridades britânicas à cansativa tarefa de ter de emitir mandados de busca. Mas, mesmo assim, tudo foi superiormente autorizado, como disse ao parlamento o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Também por aqui, nada a temer...

Vigilância desenfreada camuflada

Um tal surto desenfreado de vigilância camuflada é contrário ao direito à privacidade – garantido pela quarta emenda à Constituição dos Estados Unidos – e tem sido o ponto fulcral do debate desde que o jornal The Guardian publicou a notícia. Acrescem e estão bem documentados os perigos que cidadãos cumpridores da lei possam correr com a manipulação de registos telefónicos ou metadados da Rede, caso estes erroneamente identifiquem uma pessoa entre milhões de outras. Se a violação de correspondência é uma velha prática de espionagem, o PRISM eleva a fasquia, representando o equivalente a todas as cartas poderem ser abertas, copiadas e guardadas – para o caso de poderem ser utilizadas posteriormente como provas incriminatórias.

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O que está em causa é poder versus privacidade. A vigilância e a recolha de informação pelos serviços secretos são ferramentas de controlo, no país ou no estrangeiro. A história dos abusos pelos Governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha é vasta, tanto para subverter e derrubar governos estrangeiros do Irão ao Chile, ou para atacar os direitos civis nos seus próprios países, durante a Guerra Fria e desde o 11 de setembro.

A NSA e o GCHQ, cuja colaboração está no cerne da “relação especial” entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, têm sido o ponto central para, durante décadas, isto ser conseguido. O seu papel de espionagem global é a pedra basilar da Aliança dos “cinco olhos” dos países de língua inglesa (incluindo a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia) que sustenta o poder global ocidental. Ambas as agências foram criadas para espiar o resto do mundo, mas acabaram também a ter os seus próprios cidadãos como alvos.

Empresas privadas envolvidas

Existem dois elementos novos. O primeiro é a escala e o âmbito da recolha de informações pela NSA que, no passado, era tecnicamente impossível de alcançar. O segundo é o papel central das empresas privadas no estado emergente de vigilância global.

As empresas estão, há muito, de mãos dadas com os segredos de Estado, trabalhando com os serviços secretos, até hoje, na elaboração de listas negras de sindicalistas ou no financiamento, às escondidas, de movimentos durante a Guerra Fria. O que mudou é que as comunicações estão nas mãos das grandes empresas. E as empresas cujos servidores são vasculhados pelo PRISM são os chamados gigantes da Internet americanos, desde a Google ao YouTube.

Nos documentos da NSA agora divulgados ficamos a saber que estas empresas colaboraram. Todas negaram. Mas qualquer ideia de que estes gigantes da evasão fiscal representam uma nova forma de libertação democrática “fixe” foi agora totalmente exposta com a gafe de marketing de ontem.

Juntamente com a tecnologia é a guerra ao terrorismo que lidera a híper expansão do novo complexo industrial de segurança. Juntamente com a expressão vaga de que tudo se justifica em nome da “segurança nacional”, o terrorismo é invocado para justificar todos as formas inovadoras da antidemocracia. E como ninguém quer morrer num atentado bombista num comboio ou num autocarro, isto confere uma aura de credibilidade a organizações de espionagem anteriormente desacreditadas.

Na verdade, tanto a NSA como o GCHQ, com os seus espiões, tanto alimentam, como lutam contra o terrorismo. São eles quem fornece as informações para os ataques das aeronaves não tripuladas (drones) que matam milhares de civis no Paquistão, Afeganistão, Iémen e Somália. Um paquistanês levou a tribunal o GCHQ por este, alegadamente, ter fornecido “informação” para um ataque de drones da CIA donde resultou a morte do seu pai.

De quem é a responsabilidade?

São os mesmos serviços de informação americanos e britânicos que estiveram envolvidos em atos de tortura, rapto e outros crimes da década passada – bem como na manipulação escandalosa de informação sobre armamento iraniano de destruição maciça – que agora dizem estar a proteger-nos de algumas das consequências desses seus atos.

A nível interno, o GCHQ e a NSA foram mobilizados para liderar a espionagem e conduzir operações menos claras durante a greve dos mineiros na década de 1980, enquanto o Comité Church do Senado norte-americano divulgava os sistemáticos abusos dos Estados Unidos contra os direitos civis dos ativistas antiguerra (bem como os assassinatos no estrangeiro). O próprio senador Frank Church alertou na altura para a capacidade da NSA “poder ser utilizada contra o povo americano”.

E isto foi o que aconteceu. Primeiro no início da administração Bush e agora com Obama. E a julgar pelas experiências passadas, os abusos graves multiplicar-se-ão quando algum destes países for novamente confrontando com algum tipo de desafio político ou industrial.

As afirmações de que as agências de informação são agora genuinamente responsabilizadas pelos seus atos, em vez de apenas controladas por decretos administrativos, tribunais secretos ou comissões de curadores, têm repetidamente demonstrado não passar de um absurdo. Mas as elites políticas têm as suas prioridades. Em vez de recuarem na vigilância maciça, os ministros britânicos pretendem produzir nova legislação para a aumentarem.

Os Estados Unidos e os seus aliados na recolha e tratamento de informações são instrumentos, tanto internos como de domínio global, muito para além das questões do terrorismo. Reveladoramente, foi demonstrado pela fuga de informação que a NSA recolhe informações na Europa, por exemplo sobre a economia da Alemanha, país onde se desencadeou uma enxurrada de protestos dos seus políticos.

As instituições democráticas falharam em toda a linha em conseguir deter as operações militares e de espionagem dos Estados Unidos e de outros Estados ocidentais. Acabou por ser um punhado de promotores de fugas de informação – de Cathy Massiter e Katharine Gun a Bradley Manning e Edward Snowden – a preencher este vazio. Agora somos nós que temos de assegurar que a sua coragem não seja desperdiçada.

Proteção da vida privada

“As relações transatlânticas não são as melhores”

“O tema de discussão para a próxima reunião transatlântica sobre a segurança, nesta sexta-feira dia 14 de junho em Dublin, já foi escolhido”, escreve o jornal Le Temps: será abordada a proteção da esfera privada e a transmissão de dados aos Estados Unidos. O diário de Genebra explica que

as comissárias europeias Cecilia Malmström (Interior) e Viviane Reding (Justiça, direitos e cidadania) exigirão informações sobre a exploração de dados pessoais de cidadãos europeus recolhidos de forma ilegal por diversos serviços públicos e privados americanos. As revelações, feitas no final da semana passada, provocaram uma onda de agitação e de ira no Velho Continente, que considera a proteção da vida privada um direito fundamental. […]

É de realçar que as relações transatlânticas sobre o acesso a dados não são as melhores. Após o 11 de setembro, a UE tem vindo a resistir tanto quanto possível a Washington, que insiste para ter acesso a diversas informações (banco, viagem, família), servindo-se da luta contra o terrorismo como pretexto. […] Bruxelas está constantemente a adaptar a sua legislação para poder garantir a segurança dos dados dos seus cidadãos. Neste contexto, um projeto de lei polémico foi adiado sine die na semana passada na reunião realizada no Luxemburgo, por falta de consenso entre os ministros do Interior. […] Para a Comissão, trata-se de assegurar ao cidadão europeu um direito caído no esquecimento, que lhes garantiria o respeito pela sua vida privada.

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