Um poster do grupo Libertas apelando ao voto "Não" no referendo sobre o pacto de estabilidade europeu, em Dublin, a 28 de maio de 2012.

“Não, mas...” ao pacto orçamental

No meio de uma crise económica que se mantém em mudança constante, seria inútil os eleitores irlandeses votarem "sim" no referendo de 31 de maio sobre o pacto orçamental, que, para já, inclui apenas uma série de penalizações para os signatários mal comportados. Voltem mais tarde, defende Fintan O’Toole.

Publicado em 30 Maio 2012 às 10:25
Um poster do grupo Libertas apelando ao voto "Não" no referendo sobre o pacto de estabilidade europeu, em Dublin, a 28 de maio de 2012.

O leitor recebe um telefonema de uma solicitadora – chamemos-lhe Angela. Esta diz-lhe para ir ao seu gabinete. Mostra-lhe a cláusula penal de um contrato, a cláusula que especifica as penalizações que sofrerá, se não cumprir os termos do contrato.

Diz-lhe que o assine naquele preciso momento, caso contrário virá a ter grandes problemas. "Mas onde está o resto do contrato?", pergunta o leitor. "Ainda estamos a prepará-lo. O senhor não tem nada a ver com isso. Assine aqui."

Esta é uma analogia que ilustra bastante bem a situação absurda em que nos encontramos no que se refere ao tratado orçamental. Como quase toda a gente reconhece, o tratado não é um novo contrato político destinado a fazer sair a União Europeia de uma crise potencialmente terminal. É apenas uma cláusula de penalização. Não faz sentido, a menos que saibamos, ou até sabermos, em que consiste o acordo em si. Pedirem-nos para o assinarmos antes de sabermos o que está escrito no resto do contrato é um ato de desrespeito total.

Perante tamanho desprezo, a única atitude racional por parte do povo irlandês é recorrer aos seus consideráveis recursos em matéria de evasiva, ambiguidade e astúcia. Chegou finalmente a hora de utilizarmos o nosso astucioso estratagema.

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Mudar os dados do problema

Em 1066 And All That, um livro humorístico sobre a História britânica, os autores referem que, sempre que os ingleses pensavam ter uma resposta para a "questão irlandesa", os irlandeses mudavam os dados do problema. No contexto das relações anglo-irlandesas, a piada tem graça. Mas, quando se trata da Europa, mudar os dados do problema é realmente uma prática corrente irlandesa. Fizemo-lo por duas vezes: em relação ao Tratado de Nice, em 2001-2002, e em relação ao Tratado de Lisboa, em 2008-2009.

Quando nos foi dado optar entre "sim" e "não", nós votámos "não, mas está bem": vão-se embora, voltem mais tarde, façam uma pergunta ligeiramente diferente e nós diremos "sim". Estes não foram dos episódios mais gloriosos da democracia irlandesa. Tipificam a faceta evasiva de boa parte da nossa cultura política. Contudo, talvez tenha chegado a altura de aceitarmos o nosso lado evasivo. Talvez o "não, mas está bem" seja de facto a resposta mais honesta e significante à insensatez insultuosa que estamos a enfrentar do que qualquer outra opção que se nos coloque.

A solução óbvia teria sido o Governo adiar o referendo, porque a crise europeia torna o seu significado completamente volátil. A França recusa-se a assinar o tratado "tal como está" e a própria Alemanha tem que adiar a sua ratificação. No entanto, o Governo tem tanto medo de se desviar um centímetro que seja do caminho considerado como moralmente justificável que levou por diante a iniciativa de forma mecânica.

O que deixa o eleitorado perante um dilema. As opções "sim" ou "não" não expressam nem de perto a opinião do público. Calculo que a maioria dos eleitores se encontre numa de duas situações: a) "Sim", porque não há alternativa; b) "Não", mas voltem a fazer a pergunta, quando tiverem elaborado a estratégia de crescimento.

Caricatura de democracia

A primeira das duas – temos que fazer isso – não constitui de facto uma razão para votarmos "sim": é uma razão para o voto nulo. Se não há alternativa, então a realização de um referendo é uma farsa. É uma caricatura de democracia. A única maneira de preservar algum sentido de dignidade cívica seria o voto nulo em massa.

A segunda opção é o "não, mas…" Reconhece que poderia haver uma situação em que o tratado orçamental faria realmente sentido. Por exemplo, se fosse assumido um compromisso sério relativamente a um investimento europeu a longo prazo no crescimento: isso mudaria radicalmente a aritmética orçamental irlandesa.

O mesmo aconteceria, se se chegasse a uma resolução europeia adequada da crise bancária, que tirasse de cima dos ombros dos cidadãos o enorme peso dos custos do resgate de bancos. Mas simplesmente não sabemos se, ou em que medida, o ressurgimento da crise levará a alterações de estratégia tão sérias.

O voto no "não", com um convite implícito ao "voltem mais tarde", quando o quadro geral for visível, poderá ser a resposta mais honesta ao pedido de que tomemos uma decisão com base na ignorância. Será também um ato responsável de cidadania europeia, promovendo uma mudança de rumo sem a qual a UE se destruirá a si própria.

Alterar os dados do problema é uma especialidade irlandesa que, neste momento, parece ser uma necessidade vital para a Europa.

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