O horror é humano

À parte os delírios políticos que levaram Anders Breivik a assassinar mais de 70 pessoas, o que nos foi apresentado a 22 de julho foi o mal na sua forma mais imbecil, estima o escritor Claudio Magris.

Publicado em 1 Agosto 2011 às 14:19

Enquanto não houver provas irrefutáveis – neste momento, altamente improváveis – de uma conspiração terrorista, o incrível massacre norueguês deverá ser considerado um fait divers de proporções medonhas, mas um fait divers. É certo que há pelo mundo inúmeras e antitéticas associações terroristas capazes de qualquer atrocidade, mas também existe o crime – ainda mais misterioso e inquietante, precisamente porque, muitas vezes, é sem motivo – que nasce, se organiza e se executa no espírito de um único indivíduo, alheio a qualquer projeto político, delirante.

Como escreveu Pierluigi Battista no Corriere, procurar sempre o complot (racional à sua maneira, mesmo na perversidade), a explicação política e sociológica, um projeto coletivo preciso é uma maneira inconsciente de se tranquilizar, de identificar o ato consoante o género, seria abjeto; uma maneira de se entregar a divagações sobre tramas enigmáticas, fundamentalmente aterradoras, mas também involuntariamente gratificantes, como acontece muitas vezes quando nos detemos nas vagas imagens do pesadelo, do horror e do medo. Interpretar, ou procurar interpretar é sempre um consolo, quase uma satisfação arrogante. Perante tantos delitos ainda por desvendar, as opiniões sobre as intenções mais ou menos dissimuladas mostram-se mais importantes (e ocupam mais espaço nos jornais) que os inquéritos que, numa primeira fase, são talvez a primeira e a única coisa que conta.

Obviamente, como anunciava um slogan tonitruante de 68, tantas vezes repetido a torto e a direito, mas, no entanto, muito verdadeiro, "tudo é política". Nenhum indivíduo vem da Lua. Seja um solitário misantropo, ou o mais sociável dos homens, cada pessoa é um dos fios do tecido do mundo em que vive; vive no mundo, absorve pelo menos uma parte e junta ao seu próprio ADN o que, na realidade exterior, penetra em si, consciente ou inconscientemente.

A banalidade do infinito do mal

A paixão, o hábito, o desejo, o medo não são comportamentos que nos pertençam só a nós; é verdade que, como diziam os escolásticos, o indivíduo é inefável ou, pelo menos, tem em si qualquer coisa de inefável, mas esta sombra impercetível e inconstante do nosso coração também é urdida na sociabilidade.

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Dito isto, há uma clara diferença entre o gesto individual de uma pessoa e o projeto coletivo de uma organização, mesmo que realizado por um único indivíduo. O assassino norueguês assemelha-se mais, com uma forte probabilidade, a Landru, ou a Jack, o Estripador – também eles, filhos do seu tempo – do que aos assassinos do Italicus [nome do comboio atingido por uma bomba que provocou 12 mortos, em julho de 1974], ou da Piazza Fontana [17 mortos em Milão, em 1969]. Seria infame utilizar o seu nome para encobrir este ou aquele movimento político. O seu gesto atroz revela o poder sempre latente do mal, a capacidade de se desprender a qualquer momento; revela a nossa coabitação diária, ombro a ombro, com o mal, sempre vigilante e pronto a entrar em ação.

Este massacre de seres humanos mostra também a infinita banalidade e a imbecilidade do mal e da violência que tantas vezes nos são apresentados em embalagens sedutoras, como sendo a expressão de não sabemos que verdades infernais, mas profundas. A faca de Jack, o Estripador parece ter fascinado tanta gente que a lâmina foi vista de um ângulo diabólico, bem mais do que os ventres retalhados e o sofrimento das mulheres que ele matou, as únicas e verdadeiras protagonistas de uma história trágica, em que ele não passou de um mero figurante, maldito. Vergonhosamente e, no entanto, inevitavelmente, o nome que irá ficar na memória será o do assassino e não o das vítimas.

Devemos ter respeito por este homem

Os tiros mecânicos e repetidos do assassino a abater as suas vítimas podem ser comparados a uma monstruosa linha de montagem. Também ele, naturalmente, é um homem cuja humanidade não se esgota nos seus crimes, um homem que tem de ser perseguido, mas também protegido, segundo o princípio da igualdade perante a lei, nela se incluindo a dos assassinos mais cruéis; um homem provavelmente vitimado pelas suas obsessões, pelos seus sofrimentos, pelos seus medos. Podemos e devemos respeitar esse homem – independentemente da qualificação jurídica dos seus atos e da pena aplicável –, mas não segundo a banal retórica do mal – porque é um assassino ou, sobretudo, apesar de ser um assassino. O seu delito é a coisa mais horrível e a mais estúpida, a mais mecânica, a mais limitada da sua vida.

O assassino de mais de 70 pessoas parece que se definiu como "fundamentalista cristão", uma expressão sem sentido. Muitas vezes, identificamos erradamente fundamentalismo com integralismo, em particular o religioso, que qualquer fé – hoje em dia, principalmente do islão – e, em geral, com todas as formas particularmente intolerantes de tradicionalismo religioso.

Fundamentalismo e tradição não têm nada em comum

O fundamentalismo tem pouco, ou nada que ver com a tradição, sobretudo com aquela que é considerada guardiã zelosa da observância e da imobilidade de um dogma. O fundamentalismo não é um fenómeno tradicional, enraizado no passado, mas um fenómeno puramente moderno, característico de sociedades massificadas e da globalização, tal como, para dar um exemplo, o fascismo é um fenómeno totalitário moderno, radicalmente diferente dos autoritarismos do passado.

Este dedo assassino apoiado mecanicamente no gatilho não deve induzir reflexões sobre sociedades ricas e tranquilas como a norueguesa, onde existem dissertações deste género. Outras formas de mal – estas agora políticas, sociais, coletivas – provêm também de sociedades atrasadas e bárbaras, tal como de sociedades abertas e civis, consideradas modelos de democracia, como é o caso da Holanda, ou de certos países escandinavos, onde movimentos xenófobos agressivos progridem em contradição patente com as tradições desses países.

O facto de a xenofobia ser mais forte na Holanda do que em Espanha prende-se talvez com a cultura desta última, como a de outros países, que conservou um sentido profundo da sacralidade da vida, que distingue muito claramente os múltiplos valores constantemente postos em questão e aqueles dois ou três valores fundamentais – por exemplo, a igualdade de todos os cidadãos independentemente da sua filiação sexual, étnica, religiosa, ou outra – que devemos considerar absolutos, indiscutíveis e não negligenciáveis. Muitos valores, quase todos, deviam ser opcionais, mas não todos. Quando "tudo é possível", como escrevia, horrorizado, Dostoïevski, o mundo torna-se horrível. Mas não podemos lançar a culpa sobre o assassino norueguês, nem fundamentalista, nem cristão. Atribuir-lhe a morte de 70 pessoas já é suficiente.

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