Notícias Que futuro para a Europa? / 3
Ilustração de Joep Bertrams para o Het Parool (Amesterdão)

O nosso destino exige acção

À imagem da chanceler alemã Angela Merkel, os dirigentes europeus parecem retrair-se perante a vontade da sua população para explicar a sua inércia. É, porém, pela vontade política que se poderá enfrentar a crise e fazer vingar a ideia europeia, argumenta o filósofo Jürgen Habermas.

Publicado em 26 Maio 2010
 | Ilustração de Joep Bertrams para o Het Parool (Amesterdão)

Dias fatídicos: o Ocidente celebra a vitória contra a Alemanha nacional-socialista a 8 Maio, a Rússia a 9 Maio. Este ano, as forças armadas aliadas desfilaram juntas para comemorar a vitória. Na Praça Vermelha de Moscovo, Angela Merkel esteve mesmo ao lado de Putin. A sua presença reforçou a impressão de uma “Alemanha nova”.

A chanceler chegava de Bruxelas, onde, desempenhando um papel totalmente diferente, tinha assistido a uma derrota também de outra natureza. A imagem desta conferência de imprensa, durante a qual foi anunciada a decisão dos chefes dos governos da UE de criar um fundo comum para salvar o euro fragilizado, traiu a mentalidade crispada da Alemanha – não da “Alemanha nova” mas da Alemanha actual. Esta foto estridente fixa os rostos empedernidos de Merkel e de Sarkozy: chefes de governo exaustos, que já não têm mais nada para dizer um ao outro. Será que esta imagem se vai tornar num documento iconográfico simbolizando o fracasso de uma visão que, durante meio século, marcou a história da Europa do pós-guerra?

Enquanto em Moscovo Angela Merkel se mantinha inteiramente à sombra da antiga República Federal, em Bruxelas a chanceler tinha atrás de si semanas de luta com lobistas impiedosos, que defendem os interesses nacionais da mais poderosa das economias europeias. Recordando o modelo de disciplina orçamental alemã, Merkel bloqueou uma acção comum da UE que teria podido sustentar a tempo a solvência do Estado grego, atacado por uma especulação visando a sua falência.

As inúteis declarações de intenções impediram de conduzir uma acção comum preventiva. Foi só depois do primeiro choque bolsista que a chanceler cedeu, fortemente pressionada pela “lavagem ao cérebro” colectiva por parte dos presidentes dos Estados Unidos, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Central Europeu. Por receio das armas de destruição maciça da imprensa sensacionalista, Merkel parece ter perdido de vista as armas de destruição maciça dos mercados financeiros. Não queria, de forma alguma, uma zona europeia a propósito da qual o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, dissesse que “se os Estados não querem uma união económica, então é preciso esquecer a união monetária”.

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Entretanto, o alcance da decisão de Bruxelas começa a surgir com maior clareza. De agora em diante, a Comissão Europeia contrai empréstimos no mercado por conta da União Europeia, na qualidade de entidade; este “mecanismo de crise” é um “instrumento comum” que modifica o contrato sobre o qual se funda a União Europeia.

Ninguém se apercebeu da ruptura profunda

Hoje já ninguém pode varrer com um gesto de mão o “governo económico europeu” reclamado pelo presidente do FMI, pretendendo que é pouco razoável. Não se trata unicamente das “fraudes” gregas e da “ilusória prosperidade espanhola”, trata-se também da homogeneização dos níveis de desenvolvimento das economias heterogéneas de uma mesma zona monetária.

Contudo, não se vê em parte alguma a consciência de ruptura profunda. Uns minimizam as relações de causa e efeito entre a crise bancária e a crise do euro, e atribuem exclusivamente o desastre actual a uma falta de disciplina orçamental. Outros teimam em reduzir o problema da discordância das políticas económicas nacionais a uma questão de gestão.

A Comissão Europeia quer perpetuar o fundo de salvação do euro, actualmente limitado no tempo, e controlar os planos orçamentais nacionais antes da sua adopção. Não que estas propostas sejam pouco razoáveis. Mas é uma insolência pretender que uma tal intrusão da Comissão no direito orçamental dos Parlamentos nacionais não lesa os acordos europeus e não agravaria de maneira inaudita o deficit democrático europeu, que não data de ontem. Na realidade, a coordenação eficaz das políticas económicas deve andar a par do reforço das competências do Parlamento Europeu; não se trata do “controlo mútuo das políticas económicas” (Trichet), mas de uma acção comum. E a política alemã está mal preparada para isso.

Depois do Holocausto, foram necessárias décadas de esforços - de Adenauer a Kohl, passando por Brandt e Helmut Schmidt – para que a República Federal reintegrasse as fileiras das nações civilizadas. Uma evolução extremamente laboriosa da mentalidade dos alemães foi igualmente necessária. E no fim de contas, o que fez decidir os nossos vizinhos a mostrarem-se conciliatórios foram em primeiro lugar as novas convicções normativas e a abertura ao mundo das gerações mais novas que entretanto cresceram na República Federal.

Os alemães de Leste pareciam ter de se resignar à divisão da Alemanha. Tendo em mente os excessos nacionalistas passados, não lhes parecia muito difícil renunciar ao restabelecimento dos seus direitos de soberania, de desempenhar o papel de primeiro contribuinte líquido da Europa e, em caso de necessidade, de realizar pagamentos antecipados que, de todo o modo, traziam vantagens para a República Federal.

Em tempos de crise, até as pessoas podem fazer História

A partir do reunificação, as perspectivas da Alemanha, que se tornou maior e passou a dedicar-se à resolução dos seus próprios problemas, mudaram. Mas a ruptura das mentalidades ocorrida depois de Helmut Kohl é mais importante. De facto, desde a entrada em funções de Gerhard Schröder [em 1998] reina na Alemanha uma geração desarmada sob o plano normativo, que se deixa arrastar por uma sociedade cada vez mais complexa em dar solução, por pouco fôlego, aos novos problemas que surgem a cada dia. Consciente do retraimento da sua margem de manobra, renuncia a objectivos e a visões organizadoras, sem falar de uma projecto comum como o da unificação da Europa.

Actualmente, as elites alemãs gozam uma normalidade reencontrada no seu Estado nacional. Desaparecida, a boa vontade nervosa do povo vencido, até no plano moral, e constrangido a praticar a autocrítica, disposto a encontrar mais rapidamente o seu lugar na configuração pós-nacional. Num mundo globalizado, cada um tem de aprender a integrar a perspectiva dos outros na sua própria perspectiva. Sintoma político do declínio da vontade de aprender, as decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional Federal sobre o Tratado de Maastricht [em 1993] e o de Lisboa [em 2009] agarram-se a representações ultrapassadas de soberania, saídas da doutrina jurídica. A mentalidade egocêntrica, desprovida de ambição normativa, desse colosso voltado sobre si mesmo no meio da Europa já nem sequer garante que a União Europeia será preservada no seu vacilante status quo.

Só por si, uma evolução das mentalidades não é condenável; mas esta nova indiferença tem consequências sobre a percepção política do desafio actual. Afinal, quem está verdadeiramente disposto a tirar lições da crise bancária, que a cimeira dos G20 em Londres há muito tempo inscreveu em belas declarações de intenções - e a bater-se por elas?

Os pedidos dos especialistas estão em cima da mesa. Não que a regulamentação dos mercados financeiros seja coisa simples. Mas as boas intenções defrontam-se menos com a “complexidade dos mercados” do que com a pusilanimidade e a falta de independência dos governos nacionais. No que respeita à ajuda à Grécia, os cambistas e os especuladores fiam-se mais no derrotismo hábil do [presidente do Deutsche Bank, Josef] Ackermann, do que no sim, incomodado, de Angela Merkel à constituição de um fundo de salvação do euro ; não sem realismo, eles não acreditam numa cooperação determinada dos países da zona euro. Como podia ser de outro modo numa organização que desperdiça a sua energia em combates de galos que se saldam pela afectação dos seus lugares chave às figuras mais insípidas?

Em tempos de crise, até as pessoas podem fazer História. Por isso as nossas elites políticas indolentes, que preferem seguir os grandes títulos do [jornal tablóide] Bild, não podem pretender que são as suas populações que se opõem a uma unificação mais ousada da Europa. Até hoje, em nenhum país da União Europeia houve uma só eleição ou um só referendo em que o que estava em jogo não se limitasse a temas nacionais. Ou, com uma tão pouca vontade política, esta crise da moeda única pode fazer nascer o que um dia alguns esperaram que a política externa europeia nos trouxesse: a consciência, para além das fronteiras nacionais, de partilha de um destino europeu comum.

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