Foto : Spencer Finnley /Flickr

O Triunfo do conformismo

Vinte anos após a queda do Muro, a esperança então surgida foi asfixiada por uma União Europeia que se esforça “por padronizar os comportamentos e as atitudes”, afirma Henry Porter no The Observer.

Publicado em 11 Novembro 2009 às 18:25
Foto : Spencer Finnley /Flickr

Quando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos proíbe oficialmente os crucifixos nas salas de aula italianas, podemos optar por saudar o avanço do laicismo liberal, ou denunciar este ataque, que não tem nada de liberal, contra a liberdade religiosa e as tradições nacionais. Há talvez uma terceira solução, que consiste em dizer que a proibição não tem nada a ver com os direitos cívicos e muito com a loucura obsessiva da Europa, que quer padronizar os comportamentos e as atitudes das pessoas, da mesma maneira que delibera sobre o transporte do gado e sobre as regras de segurança das novas máquinas de tosquia.

O crucifixo não é da alçada da UE e, numa altura em que celebramos a queda do Muro de Berlim, talvez seja oportuno recordarmos que os últimos europeus a ter proibido qualquer presença de símbolos religiosos nas escolas foram os representantes dos regimes comunistas do Leste.

Céptico por amor pela Europa

Vinte anos depois, uma instituição europeia empenha-se activamente em impor o laicismo, a pretexto que a progenitura de uma desmancha-prazeres finlandesa e ateia no Norte da Itália se sentiu temporariamente distraída das aulas. É matéria para tornar qualquer um eurocéptico, sendo que o eurocepticismo me parece hoje a única atitude responsável a adoptar por um democrata inteligente, agora que o Tratado de Lisboa foi finalmente ratificado. O cepticismo não é sinónimo de hostilidade epidérmica, mas antes de vigilância, uma vigilância que avalia cada nova função, a mais ínfima nova comissão obscura ou directiva opaca, e que se pergunta: “Isto convém à nossa sociedade?” O cepticismo vem de se considerar que as instituições da UE são tão capazes de causar danos e fazer erros como os seus equivalentes nacionais, e que a distância que as separa da vida quotidiana faz com que os seus incumprimentos possam vir a ser detectados tarde de mais.

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Mas é igualmente importante sublinhar que, quando os líderes europeus se reúnem em Berlim para comemorar a queda do Muro, a sua decisão de aproveitar a ocasião para nomear um presidente da Europa cai mal. Porque o facto é que essa consagração terá lugar sem que os povos se envolvam nela, no preciso momento em que a Europa honra a revolução mais importante e menos violenta da sua história. Bem vistas as coisas, as manifestações que começaram em Leipzig e se estenderam a Dresda, Karl-Marx-Stadt, Potsdam, Halle e depois a Berlim eram uma afirmação da existência do povo, da sua necessidade de ser reconhecido, respeitado e consultado. “Somos o povo”, gritavam nesse Outono. Quem lá esteve guarda a memória das extraordinárias expressões nos rostos dos alemães de Leste que cruzavam o Checkpoint Charlie pela primeira vez. Nesse fim-de-semana, havia no ar uma aura que tornava tudo possível, e é isso que é inconscientemente espezinhado quando se negoceia nos bastidores a designação de um presidente por outro meio que não as urnas.

Bom memomento para colocar questões

Inevitavelmente, os acontecimentos que se seguiriam, nos últimos vinte anos, não podiam estar à altura desse momento. Mas não é estéril admitir que perdemos a possibilidade de construir uma Europa que não se baseie apenas na satisfação material e no crescimento económico para dar peso às suas instituições. Na sua forma mais pura, o eurocepticismo considera não ser suficiente criar uma gigantesca união consumista, retirando ao mesmo tempo discretamente das salas de aula os símbolos da vida espiritual.

O verdadeiro eurocepticismo dirá que seria talvez sensato interessar-se primeiro pelos valores que são os motores da União Europeia, concentrando-se depois naquilo que estamos a construir e nos meios para conferir maior transparência e responsabilidade às suas instituições.O aniversário da queda do Muro é o momento ideal para nos interrogarmos sobre se estamos realmente a par do que se passa na Europa.

UE "is watching you"

Por exemplo, quantos de nós ouviram falar do Comité Permanente criado pelo Tratado de Lisboa, responsável por instaurar a primeira política europeia de coordenação no sector da Segurança de planos de vigilância a uma escala maciça, com recurso a sistemas como o ADABTS (Detecção automática de comportamentos anormais e ameaças no meio de multidões) e a partilha das bases de dados de ADN? E que dizer de projectos da UE que prevêem seguir todos os veículos, podendo evidentemente servir para controlar as deslocações de cada pessoa? É de nos interrogarmos se estes sistemas não teriam tido antes o seu lugar nas "Autobahnen" do Leste.

Em 1990, Vaclav Havel declarou que todos os governos, mesmo os regimes totalitários, são da responsabilidade do povo. “Somos todos, claro que em graus diferentes, responsáveis pelo funcionamento da máquina totalitária. Nenhum de nós é unicamente vítima dela. Somos, por conseguinte, todos por igual, os seus co-inventores. Não nos deixemos enganar: nem o melhor governo do mundo, nem o melhor Parlamento ou o melhor Presidente podem fazer nada por si sós. Quem diz liberdade e democracia diz participação e, consequentemente, responsabilidade de todos nós”. Eis a opinião de um céptico esclarecido, que merece ser escutado neste aniversário.

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