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Desde o século XVII que os habitantes de Oberammergau, na Baviera, representam a cada dez anos uma peça sobre Paixão, que atrai turistas de todo o mundo.

Oberammergau: teatro sobre o Mistério da Paixão

Durante quase quatro séculos, os habitantes desta cidade bávara representaram uma peça sobre a Paixão, a cada dez anos, para afuguentar a ameaça da peste: um acontecimento cheio de cor, que atrai turistas de todas as partes do mundo.

Publicado em 2 Junho 2010 às 15:25
Desde o século XVII que os habitantes de Oberammergau, na Baviera, representam a cada dez anos uma peça sobre Paixão, que atrai turistas de todo o mundo.

São de mais, os habitantes de Oberammergau! No sopé do Kofel e da sua cruz plantada a 1342 metros de altitude, não há lugar para a modernidade – um monte de disparates, é o que é! A aldeia é tão pouco globalizada que até mesmo o cyber-café parece deslocado. E é justamente aqui que têm esta ideia fixa: levar à cena o “Mistério da Paixão”, os cinco últimos dias da vida de Cristo, um acontecimento durante o qual, de Maio a Outubro, o mundo inteiro vai invadir a aldeia situada na maravilhosa rota turística dos Alpes alemães.

Em Oberammergau, a Paixão de Cristo é quase um assunto de Estado. E porque, durante cinco meses, metade da aldeia vai estar em palco, a menor das alterações na peça merece ser objecto de acaloradas deliberações, análises e discussões que, muitas vezes, só são resolvidas por referendo, como aconteceu recentemente para determinar se era conveniente a mudança da representação do dia para a noite.

A aldeia tem cinco mil habitantes, dos quais dois mil e 400 têm funções na peça de teatro. O Teatro da Paixão é, também, a paixão do teatro e a teatralização da Paixão. Oberammmergau é, talvez, lugar mais louco da Baviera, ou até mesmo do mundo. Porque o que aqui se passa não acontece em nenhuma outra parte do mundo. Em Oberammmergau não se fala em anos, mas em sessões teatrais. Para um acontecimento que teve lugar em 2001, dir-se-á: “Foi por volta da 2000ª Paixão”. E por aí adiante.

800 pessoas em cena no palco

Para interpretar o papel de Jesus ou fazer parte do espectáculo é preciso ter nascido em Oberammmergau, viver lá há mais de 20 anos ou ser casado com uma das raparigas da aldeia. Oitocentas pessoas em cima do palco, quando não são mil, e, às vezes, também há um cavalo e um camelo. A peça é o santo e a sanha da aldeia, que permite preservar o mito original para lá de qualquer época.

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Em 1632, a peste atravessou as montanhas e tomou a vida de 84 habitantes de Oberammmergau. A comunidade sentiu-se abandonada por Deus. Em 1633, os edis decidiram que, se o Todo-Poderoso defendesse a aldeia da peste, os seus habitantes interpretariam, de dez em dez anos, “o Mistério da Paixão, da morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo”. O pedido foi atendido, a peste poupou a freguesia e, no Pentecostes de 1634, os sobreviventes honraram, pela primeira vez, a sua promessa, no cemitério da paróquia. Duzentos anos depois a representação foi transferida para o “prado da Paixão”, e, a pouco e pouco, a peça foi aumentando até 1929, ano em que toma a imponente forma que ainda hoje mantém.

Os Passionsspiele [o espectáculo da Paixão] são, hoje, um acontecimento de primeiro plano, essenciais à sobrevivência de uma comunidade cuja actividade económica é quase inexistente. O orçamento dos “Jogos da Paixão” ascendeu, em 2010, a 32 milhões de euros, para um volume de negócios provisório de 100 milhões. Um orçamento integralmente auto-financiado, mas há um pequeníssimo problema, a crise. O mercado americano estagnou e, este ano, não haverá taxas de ocupação de 100%.

Estamos a 850 metros, a mesma altitude de Jerusalém.

Geograficamente, Oberammergau fica no limite Sul do recanto da Baviera que se chama Pfaffenwinkel [literalmente, “o canto dos beatos”]. Espiritualmente, a aldeia está em plena interiorização. Sem dúvida alguma, o local é digno da Baviera dos livros de fotografias, com as suas floridas varandas de madeira, as suas igrejas em estilo alto-barroco com as suas torres bulbosas, um lugarzinho fantasista e charmoso, que todos os anos exibe uma imagem de mercado natalício.

A partir de meados de Maio a aldeia acolhe, todos os dias, cinco mil visitantes, ou seja, tantos quantos os seus aldeões. O que perfaz, à razão de cinco representações por semana, 25 mil pessoas por semana, e meio milhão de visitantes de Maio a Outubro.

Por volta das 22 horas, os barbudos da aldeia voltam para casa. Todos parecem mais velhos do que realmente são. Acabam de sair da peça. Há pelo menos 15 meses que nenhum deles faz a barba e têm, agora, um ar de discípulos, de apóstolos, de hippies. Foi assim que tudo se passou. Na Quarta-feira de Cinzas do ano passado, foi publicado o seguinte aviso: “A freguesia pede a todos os actores que deixem crescer os cabelos, incluindo a barba, no caso dos homens. Assinado: o Presidente da Junta e encenador”. Para os habitantes de Oberammergau usar barba é uma honra, tal como ter um papel na peça. Depois de dois anos e meio de grande tensão, a Redenção está iminente.

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