Por que nos odeiam?

A Europa imagina-se uma potência benfeitora, pacífica e cujo modelo é exportado para todo o mundo. Na verdade, ele é visto como um conjunto heteróclito, uma velha potência colonial que se tornou uma fortaleza virada sobre si mesma e entrincheirada por trás dos Estados Unidos. Se a Europa quiser contar, terá de mudar.

Publicado em 3 Junho 2010 às 15:15

Pouco depois do 11 de Setembro, um estribilho frequente dos comentadores norte-americanos era: “Por que nos odeiam?” Os norte-americanos sempre se tinham visto como um poder benevolente e ficaram confundidos quando viram multidões rejubilantes, em Gaza ou no Líbano, a comemorar a destruição da baixa de Manhattan.

Presentemente, são os europeus que, tal como os norte-americanos, se podem questionar porque atraem tão pouco respeito de todo o mundo. Se em tempos um Livro Branco chinês declarou a Europa “a superpotência em ascensão”, nas últimas semanas um coro de comentadores internacionais começou a escarnecer das pretensões da Europa à liderança internacional. Kishore Mahbubani, director da Faculdade de Relações Internacionais deLee Kwan Yew, em Singapura, declarou que a Europa não percebe “como se está a tornar irrelevante para o resto do mundo”.

Ao mesmo tempo, Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, decretava publicamente o “desaparecimento da Europa como grande potência”. E estas são vozes que estão longe de pertencer a uma área excêntrica ou selvagem. Mahbubani dirige um dos institutos com crescente aceitação em matéria de política asiática, e Haass é um diplomata isento de longa data. Então, porque estão os países europeus a levantar esta onda de má vontade? Apesar de tudo, os europeus, mais do que os norte-americanos, têm razões para verem o seu continente como uma influência fundamentalmente benigna. A Europa é um pacífico conjunto articulado, um sortido atabalhoado de Estados-nação, cujos compromissos internacionais se parecem limitar à concessão de apoios ao desenvolvimento e à realização de conferências longas e pouco conclusivas. Temos os nossos problemas internos, mas que não são de molde a merecer o desprezo das elites de Nova Deli, Pequim ou Cairo. Então, porque se passou tão depressa de bestial a besta? Não me parece que se possa atribuir isso a mera inveja: os estrangeiros não se limitam a cobiçar os salários, as férias e as reformas dos europeus. Nem penso que represente desespero em relação à tortura que têm envolvido as tomadas de decisão internas da Europa, apesar da frequência com que aparecem na Comunicação Social no pós-Tratado de Lisboa.

Uma fortaleza fechada raramente é sinónimo de integração

Sugiro, pois, uma verdade mais incómoda. Os outros países há muito que se ressentem da intromissão moralizante ocidental, e arranjaram agora coragem para deitar abaixo uma Europa cuja influência global já não é encarada como uma certeza. Como exemplo das limitações do nosso “soft power”, quando pergunto a pessoas de qualquer parte do mundo o que significa para elas “Europa”, surpreende-me sempre a pouca frequência com que mencionam a democracia social ou os direitos humanos, ou mesmo a “boa vida”. As respostas de longe mais comuns são memórias da dominação colonial europeia e uma noção muito forte de um autoconvencimento de superioridade dos europeus. Quando os europeus fizeram história em 1918, 1945 e 1989, o resto do mundo ainda os recorda por 1842, 1857 e 1884, e assim vai ficar para sempre. Houve muitas oportunidades para ultrapassar esse passado, mas muitos encaram a Europa como uma fortaleza fechada, que oferece poucas oportunidades de integração ou de inovação.

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Pode a Europa libertar-se deste passado?

A resposta é sim, mas se for para a Europa se tornar no líder multilateralista que desejamos que seja, é urgente uma mudança de imagem. A primeira etapa seria projectar uma imagem mais inclusiva, de um continente aberto a novas pessoas e ideias. Nos Estados Unidos, a eleição do filho de um queniano para a Presidência pode ter feito pouco para apagar as desigualdades internas do país; mas, de uma penada, permitiu ao país reinventar-se e renovar-se como nação global. A Europa tem emigrantes bem sucedidos, mas é um facto triste ter havido mais diversidade étnica no Politburo de Estaline do que na actual Comissão Europeia. Em segundo lugar, podemos tentar contar uma história coerente ao mundo exterior. A nossa preferida é uma narrativa muito cristã de queda e redenção, uma história sobre um continente devastado por séculos de guerra e conquista que, depois do desastre de 1945, decidiu fazer a paz consigo mesmo e acabar com as suas ambições coloniais.

Se conseguíssemos contar esta história de forma credível, a União Europeia poderia transformar-se no líder multilateral a que aspira. Mas sempre que temos de encarar o mundo exterior, a máscara não pára de deslizar; e lá aparecem as velhas rivalidades e maquinações nacionais, feias e a sobrar pelas bordas. Quando chega o momento de reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas ou de votar direitos nas instituições de Bretton Woods, enterramos a cabeça na areia. Sinceramente, acho que os alemães não se dão conta do ridículo a que se sujeitam ao exigir mais um lugar europeu no Conselho de Segurança, quando a Índia ainda não está lá representada. Do mesmo modo, muito tem sido feito em matéria de segurança e de política estrangeira comum na Europa, mas nas missões em África – a única intervenção substantiva fora da Europa –, é difícil iludir as maquinações pós-coloniais dos interesses franceses, belgas e britânicos.

Um continente que não assume as suas responsabilidades

Por outro lado, também fazíamos bem em acabar com a ideia de que ganhamos respeito esbanjando somas cada vez maiores em ajuda externa, sobretudo quando essas somas vão associadas a um interminável discurso moralizador. O que os desafortunados querem não é o nosso dinheiro, mas o nosso respeito. Desbaratamos apoios incessantemente, mas pouco nos preocupa saber se o dinheiro é gasto eficazmente, ou as distorções que introduzimos com isso na política local, o que demonstra um desprezo muito maior do que se não déssemos nada. Temos de aprender a lição do êxito diplomático da China em África: as nações em desenvolvimento estão menos interessadas no processo do que na obtenção de resultados.

Por último, a Europa tem de parar de se esconder atrás dos Estados Unidos e começar a assumir a responsabilidade das suas próprias decisões. Contudo, isso nunca vai acontecer enquanto a Europa for gerida por uma gerontocracia de centro-direita, que parece mais confortável a olhar para o Atlântico do que a adaptar-se ao nosso presente multipolar. Os nossos dirigentes passam os dias preocupados em manter uma participação simbólica na NATO, obcecados sobre se o Presidente Obama vai ou não participar numa cimeira UE-EUA e espadeirando pelos seus poderes de jure nas instituições de Bretton Woods, quando precisavam de perceber que as regras do jogo estão a mudar e as velhas redes estão rapidamente a perder influência. Ironicamente, os norte-americanos parecem compreender isso hoje melhor do que nós.

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