Javier Solana em visita a uma zona destruída pelos israelitas. Gaza, Fevereiro de 2009. (AFP)

Solana e o jogo diplomático

O alto representante para a Política Externa Comum anunciou que vai deixar o lugar no próximo Outouno. O balanço da sua acção depende, em parte, da boa vontade dos Estados-membros.

Publicado em 15 Julho 2009 às 17:47
Javier Solana em visita a uma zona destruída pelos israelitas. Gaza, Fevereiro de 2009. (AFP)

Recordo-me de, numa conferência de imprensa que se seguiu a uma das cimeiras da UE, bastante depois da meia-noite, Javier Solana ter adormecido, sentado ao lado de Angela Merkel. Quando esta lhe passou o microfone, não sabia do que se estava a tratar e recuperou a cena com assuntos secundários. Até que agora decidiu dizer “basta”.

"Já é tempo. Dez anos, é mais que suficiente", declarou há alguns dias ao jornal espanhol ABC. Confirmou que não se candidataria a um novo mandato. Oficialmente, partirá apenas em Outubro, mas todos se interrogam já quem será o novo Solana.

Para diplomatas, jornalistas e analistas – especialistas na União –, Solana é mais que um espanhol, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, depois secretário-geral da NATO e coordenador da política externa da União. Solana tornou-se na encarnação da função de um pretenso chefe de uma pretensa diplomacia.

“Pretenso”, porque, no que diz respeito à política externa, muitas coisas continuam a ser pretensas. Pretensas as embaixadas, pretensa a unidade, pretensa a firmeza. A verdadeira diplomacia é conduzida pelas capitais dos Estados-membros da UE, que preservam ciosamente a sua soberania neste domínio.

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Neste mundo da pretensa diplomacia, Solana circulava com uma certa desenvoltura. Deixou uma marca muito pessoal. Tornou-se o rosto e as orelhas da União, e mesmo – como vimos com o programa nuclear iraniano – o seu negociador. Foi um emissário infatigável. Nos dez anos do seu serviço deve ter passado quase dois em avião. Apagava incêndios dos Balcãs até ao Médio Oriente, mantinha a esperança de um compromisso europeu nas regiões instáveis do mundo.

Falando em nome da UE, tinha de jogar com um mandato muito limitado. Não podia nem prometer nem fazer muito. Por trás dele, havia uma grande organização, mas dividida, e, no que diz respeito à política externa, sempre encostada aos Estados Unidos. Além disso, sentia na nuca o bafo escaldante das potências europeias – como a França, a Alemanha ou a Grã-Bretanha – que não queriam concorrência em Bruxelas.

É por isso que recordamos Solana como um diplomata jovial, a fazer declarações de intenções, fugindo frequentemente às perguntas e repetindo fórmulas diplomáticas vazias. Não foi, pois, surpreendente ver o Presidente Nicolas Sarkozy, e não Solana, a conduzir as negociações de paz entre a Geórgia e a Rússia, em 2008.

A fraqueza de Solana não lhe era própria, inscrevia-se na sua função de Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum. Só este longo e tortuoso título suscitava bocejos dos interlocutores estrangeiros. A União teve o Solana que queria. E no meio de tudo, penso que conseguiu exceder as modestas ambições da União.

Pouco importa quem vai ser o novo Solana: seja Carl Bildt, o ministro sueco dos Negócios Estrangeiros, seja Jaap de Hoop Scheffer, o chefe cessante da OTAN, seja qualquer outro, será mais forte, pelo menos em teoria. Após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o representante para a política externa da UE será ao mesmo tempo vice-presidente da Comissão Europeia. O problema da sobreposição de competências entre a Comissão e o Conselho Europeu, de que Solana foi secretário-geral, fica resolvido.

O novo Solana disporá de uma rede de embaixadas (hoje chamadas “representações da Comissão”) e algumas centenas de diplomatas. O único problema é que os Estados-membros continuam a não estar dispostos a construir uma verdadeira política externa comum e a prescindir das suas competências em proveito do chefe da diplomacia europeia. O novo Solana vai, por conseguinte, ter de continuar a fingir que significa e que pode mais do que é realmente o caso. Ou então vai ter de andar a dar cotoveladas a torto e a direito, expondo-se ao conflito com Paris, Londres ou Berlim.

BALANÇO

Um homem de quem se diz bem... e se diz mal

Para Leonoor Kuijk, correspondente em Bruxelas do diário neerlandês Trouw, a partida de Javier Solana é uma perda: “Bruxelas lamenta a sua partida […] Se o Tratado de Lisboa entrar em vigor, o cargo que ocupa actualmente será consideravelmente dilatado. Finalmente, a União Europeia poderá enfrentar o mundo com um representante de peso, que disponha de verdadeiras competências. Se alguém foi talhado por medida para este novo cargo, foi efectivamente Solana”. De acordo com a jornalista, o comissário “sempre optimista e nunca com um ar cansado ou distante”, era um marco na política internacional: “Tornou o seu cargo credível entre os políticos europeus, homens e mulheres, e os chefes de Estado dentro e fora da União Europeia depositavam confiança nele. […] A conhecida piada dos anos 70 em que o norte-americano Henry Kissinger não sabia a quem telefonar quando queria discutir com a Europa, teve os seus dias. Mas isso era no período antes de Solana, porque este passou a ser um ponto de referência para numerosos ministros e chefes de Estado”.

A verdade é que a partida de Javier Solana deixa poucos indiferentes, como se pode depreender por estes dois artigos publicados na imprensa europeia. Enquanto Leonoor Kuijk enaltece o Solana “sempre optimista” que nunca pareceu “cansado ou distante”, já o colunista David Cronin, do Guardian, sedeado em Bruxelas, dá uma outra versãodo "senhor PESC", recordando a sua “grande habilidade para fazer as pessoas terem pena dele”. Temendo que o seu “estômago não aguentasse” a “orgia de contentamento” que vai certamente acompanhar a sua partida, Solana, defende Cronin, “camuflou brilhantemente a sua verdadeira folha de serviço como mentor da guerra”. Como secretário-geral da OTAN, Solana superintendeu, em 1999, o bombardeio de Sérvia sem um mandato das Nações Unidas e preparou o terreno ideologicamente, defende Cronin, para o ataque de George W. Bush ao Iraque. A sua presidência da Agência Europeia de Defesa, tal como o seu patrocínio ao thinktank Security and Defence Agenda, alimentado com fundos da indústria de armamento, contribuiu igualmente para criar um ambiente em que os governos fossem pressionados “a aumentar os seus orçamentos de defesa, numa altura em que estão a reduzir os da saúde e da educação”. Qual será a expressão em espanhol, pergunta-se Cronin, para “good riddance” [vai pela sombra]?

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