Uma mala gigante no centro de Bucareste anuncia a abertura da primeira loja Louis Vuitton na Roménia. (AFP)

Uma página que demora a virar

Os romenos elegem o seu Presidente no dia 6 de Dezembro, após uma campanha dominada pelas questões da corrupção e da herança do comunismo. Mas há a cultura, que assegura o lugar do país na Europa, considera a escritora Julia Kristeva.

Publicado em 4 Dezembro 2009 às 15:49
Uma mala gigante no centro de Bucareste anuncia a abertura da primeira loja Louis Vuitton na Roménia. (AFP)

Há vinte anos, imediatamente antes da queda do Muro de Berlim, o meu pai foi assassinado num hospital búlgaro que fazia experiências em idosos. À laia de luto, impôs-se-me um género literário: o policial metafísico “O Velho e os Lobos” [Difusão Cultural, trad. Pedro Támen], onde o velho é morto porque vê as pessoas em redor dele metamorfosear-se em lobos. E um texto, “[Bulgarie ma souffrance](http://www.google.fr/url?sa=t&source=web&ct=res&cd=1&ved=0CAcQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.univ-paris-diderot.fr%2Frbarthes%2Fmembres%2FBulgarie.pdf&ei=ru4YS_LqM9Sj4QaKv63eAg&usg=AFQjCNFFf_yZCoF6rtaPuJrf7Le_iBZfbA&sig2=CLzB2sbugwZneMuI4cDJ3g)”, reflexão sobre a tradição cultural, nomeadamente a religião, que subjaz a essa estranha “deterioração da integridade política” que hoje aparece diagnosticada pela ONG Transparência Internacional… na Roménia e na Bulgária. A actualidade política faz-me voltar a isso, com a crise económica, social e política profunda. Apesar de sublinhar aqui a situação romena, são os desenvolvimentos similares destes dois vizinhos que tenho em mente. Eles colocam uma questão que preferimos ignorar: estamos na periferia ou no centro da Europa?

A transição do comunismo para a UE fez-se sem que o antigo aparelho de Estado fosse substituído ou seriamente renovado. Os meios de comunicação social locais dissecam tranquilamente a génese do fenómeno que faz da Roménia e da Bulgária os países mais corruptos da UE. À “elevada corrupção” dos dirigentes, que transforma antigos quadros comunistas numa oligarquia neo-capitalista, acrescenta-se a “corrupção quotidiana”: “relações pessoais”, “subornos” em catadupa, estratégia do desenrasca e desvio de dinheiros públicos, etc.…

Desde 2002 que o GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção), associado ao Conselho da Europa, faz soar o alarme; mas o OLAF, Organismo de Luta Antifraude da UE não dispõe nem de meios nem de competências suficientes para tratar os diversos casos de corrupção nos Estados-membros. A ineficácia destes mecanismos de cooperação e de verificação desacredita a própria Europa. Bruxelas reduziu em 220 milhões de euros os apoios destinados aos projectos agrícolas e de infra-estruturas de transportes búlgaros, e congelou 600 milhões, à espera de medidas governamentais contra a corrupção. A Roménia passa a esponja sobre as críticas da UE, mas não sobre as sanções.

Medo, covardia, comprometimento profundo durante o comunismo do casal Ceaucescu: a corrupção arrasta o seu cortejo de escândalos trágico-cómicos num cenário de transição complexa, onde o nacionalismo, a xenofobia e o populismo ombreiam com o despertar para o sindicalismo, a miséria camponesa e a inevitável “questão cigana”. Os ciganos… Entre o ladrãozeco e o vadio? Ou, pelo contrário, cidadãos europeus por excelência, porque capazes de circular, e que convém proteger não apenas na acepção dos Direitos Humanos, mas também levar à cena política? Belo paradoxo: o cigano é um romeno? Um europeu-tipo? Ou mesmo o Homem Universal? Mas então, esta pobre Roménia está na periferia ou no centro da Europa?

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É necessário governar na ponta da metralhadora”, repete Corneliu Vadim Tudor, ex-louvador do casal Ceaucescu, agora “iluminado por Deus para salvar a nação” [dirigente do Partido da Grande Roménia, de extrema-direita]. Com o búlgaro Volen Siderov [ultranacionalista do partido Ataka], representam o grande contingente do grupo europeu “Identidade, tradição, soberania” – logo a seguir ao Front National francês. Mistura de castanho e vermelho, que casa o ultranacionalismo da extrema-direita à nostalgia comunista de um Estado protector, combatem os “meios de Comunicação Social políticos” e as “minorias privilegiadas” (húngara na Roménia, turca na Bulgária).

Democracia kafkiana”, “estranha combinação de burlesco e bizantinismo”: Norman Manea, escritor judeu romeno instalado em Nova Iorque, tem razão. Pressionados para encontrarmos remédios jurídicos e sociais, esquecemos as fontes culturais. Se é verdade que se impõe uma transavaliação das tradições religiosas, tecelãs da diversidade cultural europeia, essa análise depara-se aqui com um actor cuja importância a Europa secularizada continua a subestimar: a Igreja Ortodoxa. Associada ao Estado que paga ao clero e a uma classe política pactuante com a ortodoxia na sedução da população, a Igreja confessa ter colaborado com a Securitate e persiste em associar-se à acção do Estado. Estamos longe de uma vida espiritual orientada para a tomada de consciência cidadã e a integridade pública!

Existe uma cultura europeia? A minha resposta é “Sim”. Ao mostrar que é capaz de olhar para si, para as suas deficiências e os seus horrores, a cultura europeia é portadora de identidade polifónica, evolutiva e inovadora, único antídoto para a automatização da espécie. Do Atlântico ao Mar Negro, de Ovídio a Ceaucescu, da Securirate ao prémio Nobel para Herta Müller.

Eleição presidencial

A escolha entre o futuro e o passado

Os romenos são chamados às urnas no próximo domingo, 6 de Dezembro, para a segunda volta da eleição presidencial que opõe o Presidente cessante, Traian Basescu (Partido Democrata-Liberal) ao social-democrata Mircea Geoana. “A cada eleição, sempre que escolhemos o futuro, esperamos que seja a nossa última batalha”, [observa o escritor Mircea Cărtărescu](http:// http://prezidentiale.evz.ro/emain/articolul/878472/SENATUL-EVZ-6-decembrie-o-zi-decisiva) no Evenimentul Zilei. “Infelizmente, o passado regressa sempre e vinga-se. É a maldição da sociedade romena, que carrega ainda os vestígios das feridas de décadas de totalitarismo”.

Que queremos?”, pergunta o escritor aos seus leitores. “O futuro com Basescu ou o passado com Geoana”, cujo partido tem por presidente honorário Ion Iliescu, que foi o secretário-geral do Partido Comunista de Ceausescu. “A chegada de Traian Basescu ao poder, em 2004, abriu o caminho a três acções: a reforma da justiça, a abertura dos processos do Securitate e a condenação do comunismo. Com um efeito devastador sobre a classe político-económica, composta por empresários corruptos e membros da ‘nomenklatura’”. Se Geoana ganhar, em 6 de Dezembro, “o país voltará ao passado e assemelhar-se-á a um Estado sul-americano, com as instituições cativas dos interesses financeiros de um grupo político-económico-médiatico”, avisa o escritor, que conclui: “Não quero uma Roménia assim”.

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