Uma sociedade que se considera pró-europeia – mais, como “Europa antes da Europa” – e que encara a sua adesão à União Europeia como um regresso à casa comum, entre os seus pares, pode dar um passo atrás, do ponto de vista cultural e político?
Infelizmente, sim! Assistimos, neste momento, a um desses fenómenos, na Croácia. Na comemoração deste ano da queda de Vukovar [conquistada pelas forças sérvias em 18 de novembro de 1991], uma “Comissão para a defesa da Vukovar croata” [composta por veteranos da guerra de 1991-1995] desafiou o Governo [uma coligação de centro-esquerda, liderada pelo Partido Social-Democrata], impedindo-o de se juntar à marcha em memória das vítimas da cidade.
Há um ano que vimos testemunhando o nascimento de um movimento que se reúne em torno da iniciativa “Em nome da família”, que defende a família heterossexual. Inspirada no “Tea Party” dos Estados Unidos, próxima de círculos conservadores, a iniciativa croata e os seus defensores afirmam que o casamento seja definido na Constituição como a união exclusiva de um homem e uma mulher. Para isso, recolheram 700 mil assinaturas a favor do referendo sobre o casamento. Dado o pequeno número de homossexuais declarados na Croácia, é evidente que o casamento gay é apenas um símbolo da desconfiança em relação ao “outro” e ao “diferente”, bem como um pretexto para desafiar o Governo e o poder.
O referendo realiza-se no dia 1 de dezembro, apesar das objeções de associações de proteção dos direitos humanos e das minorias, e dos argumentos do Partido Popular Croata [liberal, integrante da coligação governamental], que sublinhou que a questão formulada no referendo coloca em risco os direitos fundamentais dos cidadãos. No entanto, o Tribunal Constitucional decidiu a favor da iniciativa “Em nome da família” e deu luz verde à pergunta formulada no referendo [“É a favor que o casamento seja definido pela Constituição como a união de vida entre um homem e uma mulher?”].
Valores tradicionais
[[É forçoso constatar que a Croácia se está a voltar cada vez mais para os valores tradicionais e morais, como a família, a religião e a nação]]. Basta recordar a polémica levantada sobre a introdução da educação sexual nos currículos escolares, que revelou um enorme fosso entre visões conservadoras e liberais do mundo, para além de diferenças de perceção do poder, ideologia e política. Recentemente, a academia de cultura e da língua croatas Matica Hrvatska (Matriz croata), propôs penalizações financeiras para quem não utilize corretamente a língua croata. Embora se trate de iniciativas legais provenientes de instituições e da sociedade civil, é claramente um sinal dos tempos.
Numa época de grandes mudanças, provocadas pela crise financeira e económica, pelo desemprego, pela globalização e pela adesão à União Europeia, a insegurança aumenta e, consequentemente, as pessoas regressam a padrões de comportamento e valores que lhes deem segurança. Isto é problemático quando a deriva para o neoconservadorismo é acompanhada por um desejo de mudar a lei, sobretudo a Constituição, que deve ser mais durável do que as crises, os medos e outros problemas que se espera sejam temporários.
Reconquista camuflada
Mas o que acontece quando uma associação civil, como a iniciativa “Em nome da família”, consegue mobilizar 700 mil pessoas? E, sobretudo, quando o propósito da mobilização não é o bem comum, mas a discriminação sexual, a exclusão de alguns cidadãos, o questionamento dos direitos humanos e dos direitos das minorias? Quais podem ser as potenciais consequências de uma mobilização em massa, sem nenhum propósito político aparente, num país onde cada mínima decisão tem conotação política? Será uma “reconquista” camuflada da direita, e de que direita? Porque não parece que a União Democrática Croata [direita conservadora e nacionalista, o maior partido da oposição] esteja a manipular o movimento, pelo contrário, parece que estes objetivos lhe estão a ser impostos. E tudo isso acontece, evidentemente, com a bênção da Igreja (e seu apoio financeiro?), que aproveita a brecha para se infiltrar.
No entanto, não vão ser os “partidários da família” a decidir o resultado do referendo, mas a maioria silenciosa, aqueles que pensam que nada disto lhes diz respeito. Na verdade, não percebem que se trata de uma questão de princípio, e não do casamento entre homossexuais ou do uso do cirílico. Quem se recusa a votar, nesta ou noutras ocasiões, arrisca-se a perder, um dia, o direito de voto.