Já agora, está aqui a conta. © Ilustração de Kountouris publicada no diário grego Eleftheros Typos

A Europa precisa de um governo único

A crise da dívida grega não só minou o euro como pôs a nu as falhas dos princípios fundadores da moeda única. Com os 27 países da UE reunidos em Bruxelas a 22 Março, Robert Skidelsky defende que um mercado comum sem um Governo comum não funciona.

Publicado em 24 Março 2010 às 17:23
Já agora, está aqui a conta. © Ilustração de Kountouris publicada no diário grego Eleftheros Typos

Desafios dramáticos e respostas medíocres: eis a história da União Europeia. Só muito raramente a UE se tem revelado à altura dos acontecimentos, razão pela qual a Europa se está a afundar económica e geopoliticamente.

OTratado de Roma de 1958, que instituiu a Comunidade Económica Europeia, representou o grande salto em frente da Europa. Mas a decisão de criar um mercado comum sem um Governo comum apenas criou um foco de problemas para o futuro. Desde então, tudo – o alargamento para 27 Estados-membros e a criação de uma Zona Euro de 16 membros – alargou o fosso entre a retórica e a realidade. A Eurolândia avançou com promessas muito superiores às que a sua história lhe permite cumprir.

A crise financeira grega é o exemplo mais recente deste fosso. Na origem está uma crise de "alargamento", neste caso, a ampliação da Zona Euro. Através de um esforço inaudito de disciplina fiscal nos anos 1990 – auxiliado, na Grécia, por uma contabilidade "criativa" – Portugal, Itália, Grécia e Espanha conseguiram atingir os critérios de adesão em 2002. Uma vez no euro, porém, libertaram-se da pressão. A maioria dos países mediterrânicos manteve hábitos de grande consumo, confiando em que os mercados não os chamariam à pedra.

Agora, Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão, disse "Basta!". Advoga a criação de um Fundo Monetário Europeu (FME), para fornecer empréstimos de emergência aos países em risco de incapacidade de cobertura soberana da dívida. Tais empréstimos seriam acompanhados de "preços proibitivos", "condições muito apertadas" e "penalizações incontornáveis" em caso de incumprimento. Traduzido em linguagem comum, isto significa que as finanças de um país a quem fosse concedida ajuda do FME seriam fiscalizadas, durante uns tempos, por comissários estrangeiros.

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Euro pode desintegrar-se

Milton Friedman previu que a moeda única se desintegraria ao fim de uma década ou duas; hoje, isto parece muito mais provável. Apesar de tudo, Schäuble sabe que as condições que propõe são politicamente inaceitáveis. E, assim, declara que qualquer país incapaz de as cumprir "deve, em último recurso, retirar-se da união monetária, apesar de poder permanecer membro da UE". A Alemanha poderia mesmo retirar-se, se não conseguisse pôr na linha os parceiros mais fracos.

A crise mediterrânica expôs uma falha da Zona Euro que vem de há muito: a ausência de um Governo único. A Zona Euro precisa de ferramentas para harmonizar os chamados "choques assimétricos" – aqueles que afectam alguns membros mais do que os outros. Mas não dispõe dessas ferramentas, nomeadamente um departamento financeiro com poderes para instituir e colectar impostos e contrair empréstimos, e um banco central que possa actuar como emprestador de último recurso aos bancos dos membros.

A proposta de Schäuble tem uma dimensão ao mesmo tempo económica e geopolítica. Economicamente, expõe a fronteira cavada entre os que acreditam que os desequilíbrios externos são falha dos que gastam insuficientemente e os que acreditam que são falha dos que gastam demasiado. O edifício fiscal conservador da Alemanha gostaria que os outros países da UE que têm grandes défices orçamentais recuperassem a saúde económica através da disciplina fiscal, da diminuição da procura nacional e do aumento das exportações. O problema, segundo o dirigente alemão, não são os elevados níveis de poupança dos países, mas a despesa excessiva de outros membros da Zona Euro.

Frugalidade nem sempre é virtude

Martin Wolf, doFinancial Times, considera este argumento economicamente incoerente. O aumento das economias num país implica a falta de consumo nos outros. As poupanças elevadas devem servir para aumentar o consumo, permitindo que os grandes gastadores exportem mais e comecem a viver dentro das suas possibilidades sem serem condenados à estagnação. A frugalidade não é uma virtude se ninguém estiver disposto a gastar.

O principal impacto da bomba lançada por Schäuble está, contudo, na geopolítica da UE. A elite política europeia encara a União como um dos pólos de um mundo multipolar. Mas o que é a Europa? Menos do que uma federação, mais do que uma confederação: faltam-lhe um centro de gravidade e fronteiras definidas. Sem coerência interna nem forma externa, a Europa é pouco mais do que uma expressão geográfica.

A proposta de Schäuble implica, pois, que a Eurolândia se remeta a uma dimensão governável. Como o rapazinho que não temeu declarar que o rei ia nu, apontou o dedo do realismo à retórica da aspiração com que todos os dirigentes europeus se acham ainda compelidos a vestir as suas declarações. Quebrou o tabu de pôr em dúvida qualquer aspecto do projecto europeu. Para os que preferem a construção sólida ao pensamento idílico, as suas palavras foram bem-vindas.

Visto da Alemanha

A chanceler de ferro impõe as suas regras

Enquanto a Spiegel-Onlineanuncia a "iminente vitória" de Angela Merkel no dossiê grego, sobretudo depois do apoio francês à "solução FMI", o Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) traz à primeira página a inversão das regras políticas na UE. Ao propor a exclusão dos países menos cumpridores da Zona Euro, a Alemanha "diz abertamente, e pela primeira vez, que deixou de estar disposta a pagar seja que preço for pela integração europeia".

No início do seu mandato, a chanceler seguiu as pisadas do artesão da reunificação, Helmut Kohl, renunciando a milhões de euros de subsídios, para preservar a paz com a Polónia, e "pôs em primeiro lugar a coesão da Europa, relegando para segundo plano os interesses alemães". Hoje, porém, Merkel faz marcha-atrás, "praticando uma política sem preocupações morais, como a habitualmente praticada em países como o Reino Unido".

Segundo este diário conservador, a partir de agora a palavra de ordem em Berlim é esta: "A nossa prioridade não é a Europa, mas o povo alemão". Daí que, no Conselho Europeu de 25-26 de Março, Merkel vá ser "menos flexível do que esperariam os europeus do Sul". "Ela governa um país que já não se entusiasma com a integração europeia. A percepção que os alemães tiveram de uma Alemanha tesoureira da Europa gerou um clima eurocéptico."

O FAZ considera que esta mudança constitui "um golpe profundo para a Europa, mais profundo do que muitas alterações por tratado". A velha guarda europeia, que defende o conceito de uma UE como união para a paz, vai decerto encarar com inquietação esta mudança de atitude, conclui o diário, segundo o qual a UE se tornou contudo demasiado grande para ser "levada às costas" apenas pela Alemanha.

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