Este ano, o Presseurop foi, uma vez mais, o parceiro do Prémio do livro de história da Europa atribuído pela Associação dos historiadores. O vencedor de 2013, anunciado em junho, é Terra Sangrenta, do norte-americano Timothy Snyder. Esta obra, que já foi traduzida em mais de vinte países e distinguida com várias recompensas, representa uma leitura fundamental para a história da Segunda Guerra Mundial e da Europa, e para a memória do nosso continente.
Timothy Snyder focaliza o seu trabalho, fruto de uma investigação na literatura histórica que envolve um número impressionante de línguas, numa região que se estende desde a Polónia até à Rússia ocidental e inclui a Ucrânia, a Bielorrússia e os países bálticos. Esta região está portanto delimitada e foi batizada de “terra sangrenta”, porque foi nesse local que os dois totalitarismos europeus do século XX, o nazismo e o estalinismo, entraram em confronto, se invadiram mutuamente e se sucederam à custa de milhões de vidas humanas.
Catorze milhões de pessoas
É mencionado um valor tanto na introdução como na conclusão de Terra Sangrenta: 14 milhões. O número de pessoas que morreram entre 1933 e 1945 por causa de políticas decididas em Moscovo e Berlim, para servir as visões ideológicas de Estaline e Hitler. Timothy Snyder conta apenas as vítimas de ações deliberadas, deixando de fora os civis que fugiram da guerra ou os soldados mortos em combate.
Talvez fosse necessário um historiador não europeu para orientar o seu olhar e a sua análise fora dos roteiros traçados pela historiografia clássica dos anos 1930 e da Segunda Guerra Mundial na Europa.
Timothy Snyder descreve o horror gerado pela fome na Ucrânia e toda a sua perversidade, colocando-a novamente no seu contexto histórico. Na sua abordagem do grande terror estalinista, o autor opta por não evocar os grandes processos de Moscovo para mostrar as consequências que este teve nas minorias ucranianas e polacas. Ao recuar na cronologia, explica como os soviéticos e os nazis deportaram populações, dizimaram comunidades e eliminaram as elites dos países sujeitos à sua arbitrariedade. Ao analisar a mecânica da Solução Final, descreve como os aspetos económicos se misturaram com os aspetos ideológicos. E quando recorda o fim da guerra, relata a limpeza étnica de todas as comunidades – polacas, ucranianas e sobretudo alemãs – que ficaram no lado errado das fronteiras do pós-conflito.
Um nível de violência nunca antes atingido
Eis onde reside o grande mérito de Terra Sangrenta. Habituados a ler, por um lado, a história da URSS e, por outro, uma história da Segunda Guerra Mundial, centrada na ascensão do nazismo, a invasão da Europa e a sua libertação pelas forças aliadas (uma zona de combate muito bem documentada e presente na cultura popular) e as forças soviéticas (cujas zonas de combate mais conhecidas são as batalhas que ocorreram em Estalinegrado e em Berlim), descobrimos um amplo espaço onde se desenvolvem essas duas histórias e onde se concentra um nível de violência nunca antes atingido no resto da Europa ocupada.
Existe uma enorme implicação historiográfica e memorial. Porque a Europa atual baseia-se, sobretudo, no traumatismo das duas guerras mundiais, na rejeição do nacionalismo e do totalitarismo, e na memória do Holocausto e das suas cumplicidades em cada Estado. No entanto, o que Timothy Snyder nos diz é que o totalitarismo e o Holocausto culminaram em territórios situados fora da União Europeia, ou que dela fazem parte desde há menos de uma década, estando portanto muito ausentes da nossa memória coletiva.
A imagem do campo de concentração, habitualmente associada ao nazismo, ilustra as lacunas da memória. Como o relembra Timothy Snyder, “a política alemã que passava pela exterminação de todos os judeus da Europa não foi executada nos campos de concentração, mas em camiões de gás asfixiante e nas fábricas da morte de Chełmno, Bełżec, Sobibór, Treblinka, Majdanek e Auschwitz”. Auschwitz em si veicula uma memória imperfeita. Porque “apesar da fábrica da morte de Auschwitz ter sido a última instalação operacional, não marcou o apogeu da tecnologia letal: os pelotões de execução mais eficazes matavam mais depressa, as instalações especialmente concebidas para matar os prisioneiros à fome matavam mais depressa e Treblinka matava mais depressa. Auschwitz também não foi o principal centro de extermínio das duas maiores comunidades judaicas da Europa, os polacos e os soviéticos. […] Na altura em que as câmaras de gás de Birkenau iniciaram a sua atividade, na primavera de 1943, mais de três quartos dos judeus vítimas do Holocausto já estavam mortos. […] Auschwitz é o fim da fuga da morte”.
Uma questão muitas vezes ocultada
Timothy Snyder também explica que “em Auschwitz morreram mais polacos que não eram de origem judaica do que judeus de qualquer outro país europeu, com duas exceções: a Hungria e a própria Polónia”. Esta informação, que está longe de relativizar a amplitude e a particularidade do Holocausto, prepara o terreno para a segunda grande perspetiva do livro: a forma como as terras de sangue, que passaram de um regime para outro seguindo a alteração das fronteiras, pagaram o preço das experiências políticas estalinista e hitleriana.
Com estatísticas em pano de fundo, o historiador relata histórias e dá nomes a alguns mortos. Agricultores ucranianos, apoiantes ucranianos, polacos ou bielorrussos, polacos intelectuais e conceituados, estónios, letões ou lituanos, simples cidadãos das minorias polacas ou ucranianas, prisioneiros de guerra soviéticos: todos foram vítimas da coletivização e das perseguições nacionais levadas a cabo por Estaline, da colonização radical do leste realizada por Hitler, dos crimes de guerra dos dois campos. Observador imparcial, Timothy Snyder também conta as pilhagens dos diferentes grupos étnicos e políticos entre si, quer por oportunismo ou pelo facto de o confronto soviético-nazi não deixar outras opções para sobreviver.
Timothy Snyder apresenta portanto duas visões, por um lado, os países redesenhados pelo pacto germano-soviético de 1939 e as relações de força de 1945 e, por outro, as sociedades dizimadas e divididas. Por conseguinte, este coloca uma questão muitas vezes ocultada no resto da Europa, a da relação entre as terras de sangue e a sua história, a Rússia e a União Europeia.
No final do livro, descreve a forma como a URSS e os regimes comunistas instaurados por Estaline na “Europa de leste” instrumentalizaram a memória da guerra para reforçar o seu poder e orientar a visão ideológica dos seus regimes. Hoje em dia, a Polónia e o antigo bloco de leste fazem parte da UE, as repúblicas soviéticas tornaram-se independentes e três delas também aderiram à UE. Enquanto a Europa enfrentava o seu passado (com alguma dificuldade) e se formava politicamente, os países das terras de sangue evoluíram separadamente, com bases incompletas e diferentes.
Assim sendo, a herança comum partilhada pela “velha” e a “nova” Europa neste período crucial da história do nosso continente é provavelmente ínfima. Mas não deixa de ser essencial para a construção de uma verdadeira identidade europeia e para a execução de uma política coerente da UE para com a sua vizinhança oriental.
A crítica literária polaca Maria Janion tinha perfeitamente noção disso quando declarou, após a adesão do seu país à UE: “Sim à Europa, mas com os nossos mortos.” Timothy Snyder permite-nos conhecer esses mortos, que também são nossos.