A imprensa contribuiu para exacerbar o conflito entre Berlim e Atenas. Capas das publicações Eleftheros Typos, I Nikis e Focus. Montagem: Presseurop

Crise desperta rancores antigos

Os gregos são batoteiros e não merecem ajuda. Os alemães têm de pagar para salvar a Grécia da crise, porque os nazis saquearam aquele país. A guerra dos estereótipos grassa entre os dois países, que, no entanto, tinham conseguido ultrapassar o peso da História, lamenta o Süddeutsche Zeitung.

Publicado em 1 Março 2010 às 17:14
A imprensa contribuiu para exacerbar o conflito entre Berlim e Atenas. Capas das publicações Eleftheros Typos, I Nikis e Focus. Montagem: Presseurop

Quando os nervos estão à flor da pele, o bom senso fica esquecido. O diário Kathimerini, de Atenas, publicou uma caricatura que mostra o ministro das Finanças grego a trabalhar, no seu gabinete, quando a secretária lhe anuncia a chegada dos inspectores da UE. "Um minuto!", implora o ministro, antes de despir a camisa. A seguir, vê-se o ministro a flagelar o tronco nu. Ao seu lado, estão três homens com fardas da Gestapo, que exclamam, em alemão: "Sehr gut!" ("Muito bem!").

Nos tempos que correm, o jornal conservador Kathimerini representa na realidade a voz da razão, ao alertar contra a "histeria anti-alemã". Outra voz da razão é a de Filippos Petsalnikos, o presidente do Parlamento, que acaba de convocar o embaixador da Alemanha. Antes disso, Petsalnikos dissera umas quantas verdades aos alemães.

Gregos perdoaram alemães muito rapidamente

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Parece ter chegado a hora dos "espíritos medíocres", lamenta o diário. Humor duvidoso e ignorância, do lado alemão: a revista Focus publicou a estátua da Vénus de Milo a fazer um gesto obsceno e, por cima desta, o título "Vigarices gregas". Cruzes suásticas e protestos de fachada, do lado grego. Uma "guerra de estereótipos", segundo Kostas Kalfopoulos, editorialista do Kathimerini, que cita um aforismo de Hölderlin: "Onde cresce o perigo nasce também aquilo que salva". Mas também pergunta: o que se deve fazer "quando só cresce a parvoíce"? Kalfopoulos fala correntemente alemão. Aliás, como muitos gregos. Aqui, o alemão é a segunda língua estrangeira; nos anos 1970, toda uma geração estudou na Alemanha.

E talvez o mais surpreendente seja isto: a guerra deixou, na consciência colectiva dos gregos, fragmentos de Alemão como "Rrraus" e "Kaputt" mas não gerou nenhuma cultura de ressentimento. Os gregos perdoaram espantosamente depressa aos alemães. "No entanto, nenhum outro povo não eslavo sofreu tanto sob o domínio alemão", sublinha o historiador Hagen Fleischer, que vive na Grécia. Foi em Atenas, em 1952, que abriu as portas o primeiro Instituto Goethe do mundo. Em 1956, o primeiro Presidente da República Federal, Theodor Heuss, escolheu a Grécia para a sua primeira visita de Estado. Unidos sob a bandeira do anticomunismo, os dois países depressa passaram para segundo plano os crimes nazis.

Alemanha reunificada exigiu reparações

Mas os gregos sempre quiseram uma coisa: "Queriam ver que os alemães se lembravam", explica Fleischer. Alguns gregos não gostam que a questão das reparações alemãs seja evocada precisamente hoje, como que em resposta: "É um rebuçado com o qual alguns tentam fazer esquecer a doença, num momento em que a Grécia tem de arregaçar as mangas e trabalhar com os europeus", comenta Kalfopoulos.

Os alemães não podem, porém, passar por cima do facto de que a maior parte dos gregos se sente enganada nessa matéria, sobretudo quando tenta perceber o motivo por que, de repente, toda a oposição – do LAOS, partido de extrema-direita, aos comunistas ortodoxos – recomeça a exigir reparações.

Depois de 1945, houve um acordo tácito entre os Aliados. A ideia era construir uma Alemanha forte, ao invés de um país arruinado pelas dívidas, para servir de bastião contra o comunismo. Na prática, o Acordo de Londres de 1953 libertou os alemães da obrigação de pagar as suas dívidas de guerra. A Alemanha só pagaria depois de reunificada, no quadro de um tratado de paz. Não foi por acaso que, em 1990, Bona conseguiu evitar que o tratado "Dois mais Quatro" sobre a reunificação incluísse a expressão "Tratado de Paz": era um meio de continuar a fugir às reparações. "Os próprios nazis tinham calculado o montante da sua dívida para com a Grécia", refere Hagen Fleischer. Cerca de 5 mil milhões de euros segundo os cálculos actuais. A RFA só pagou uma única vez, no quadro daquilo a que se chamou o "Acordo Global" de 1960 [uma série de acordos com vários países europeus e Israel], o montante de 115 milhões de marcos [cerca de 58 milhões de euros], destinado principalmente às vítimas judaicas de crimes nazis na Grécia.

Um diplomata alemão apresenta a posição oficial da RFA nos seguintes termos: "Para nós, as reivindicações referentes às reparações foram sendo regularizadas com o tempo." Do ponto de vista alemão, isto pode parecer engenhoso e talvez a Realpolitik exija que assim seja. Mas será de facto de espantar que, por seu turno, alguns gregos pensem que a astúcia dos alemães não tem emenda? "Mesmo que nos sintamos traídos, isso não tem nada a ver com a situação contra a qual devemos lutar", confessa Kalfopoulos. Muito bem. Mas, conclui o historiador Fleischer: "Tudo depende do tom." Que, neste momento é quase histérico. Lá, como aqui.

Contexto

Escalada verbal

Os Governos grego e alemão multiplicam esforços para acalmar a tensão entre os dois países, que se manifesta na imprensa. O tiro de partida foi dado pela revista Focus, que publicou uma Vénus de Milo a fazer um gesto obsceno. A reacção dos gregos, que se sentiram picados, não se fez esperar. No dia seguinte, o diário de esquerda I Nikis respondeu com uma bandeira nazi a flutuar sobre a porta de Brandeburgo e, a partir daí, os cartoons multiplicaram-se. A seguir, o vice-primeiro-ministro grego recordou as pilhagens cometidas pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial e que estas nunca tinham sido alvo de reparação. No fim da semana passada, uma associação de consumidores apelou ao boicote aos produtos alemães na Grécia. Por seu turno, os bancos alemães declararam que se recusavam a comprar obrigações gregas. Para acalmar este clima explosivo, a Chanceler alemã Angela Merkel convidou o primeiro-ministro grego George Papandreou para uma visita a Berlim, em 5 de Março.

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