Notícias Migrantes sobre a rota dos Balcãs 1/5
A fronteira entre a Hungria e a Sérvia perto de Kübekháza.

Em frente ao muro de Viktor Orbán

Primeira parte de uma reportagem realizada em colaboraçao com a investigadora Móni Bense perto de Szeged, onde se cruzam a Hungria, a SErbia e a Roménia e onde deve começar a construçao da barreira que pretende impedir os migrantes de entrar na Uniao europeia.

Publicado em 7 Setembro 2015 às 20:31
Délmagyarország/Schmidt Andrea  | A fronteira entre a Hungria e a Sérvia perto de Kübekháza.

“Onde estamos nós?”
“Onde estamos nós?”
“Eles nem sequer sabem onde estão!”
“Vim da Síria, fugi do ISIS.”
“Eu vim do Iraque, do Curdistão.”
Um pouco mais tarde seria uma rapariga afegã de doze anos a repetir a pergunta. Ela fugiu dos taliban, trabalhou um ano na Turquia com a mãe, agora chegam à Europa. Não há pai, pelo menos aqui e agora. E não são assim tão poucos aqueles que desconhecem como se chama este lugar. Estamos na estação de comboios de Szeged, como alguns deles descobriram através do GPS dos seus smartphones, os mesmos telefones que lhes serviram de chave para passarem a salto a última fronteira, entre a Sérvia e a Hungria, porque com os sistemas de navegação puderam localizar as coordenadas transmitidas pelos traficantes numa das últimas sms-senhas para o futuro. E o futuro, que já custou muitas centenas ou alguns milhares de euros até aqui, ainda não é aqui, nesta estação de comboios na periferia da União Europeia onde passamos juntos a madrugada. Mas saberemos realmente onde estamos, nesta selfie da “história do presente”, quando uma nova cortina de ferro de 175 quilómetros se ergue no coração da Europa? Quatro horas e 36 minutos: “parte dentro de momentos, da linha número 1, o comboio com destino a…”.
“Onde estamos e para onde vamos?”
“Nós?”

GPS 46.126299, 20.264075

“O sentido da vida é ultrapassar fronteiras”, dizia o viajante-repórter Kapuscinski, frase amplificada quando a fronteira é a três. Aqui, onde Hungria, Sérvia e Roménia se tocam, no Triplex Confinium, vai ser o extremo oriental da estrutura de arame farpado, com quase quatro metros de altura, cuja construção as autoridades húngaras anunciaram no final da primavera de 2015, como medida para travar aquela que é a maior crise migratória da Europa desde a Segunda Guerra, num momento em que nunca houve tantos refugiados no mundo como hoje. As duas maiores pontes de entrada têm sido o sul de Itália e o sul da Hungria, neste caso, com a Grécia ou a Bulgária, e depois a Macedónia e a Sérvia, como pilares de trânsito.
Este “Expresso do Ocidente”, através dos Balcãs, é já a principal via de acesso à União Europeia, mais movimentada do que a rota pelas águas do Mediterrâneo até às praias de Lampedusa. O traçado planificado para esta barreira anti-migrantes estende-se daqui, do ponto de partida desta viagem, até ao nosso destino, uma outra fronteira tripla (entre Hungria, Sérvia e Croácia), no cotovelo de um dos braços do Danúbio.
Uns chamam-lhe muro, outros dizem que é apenas uma vedação, assim é a designação oficial. Na paisagem, quando aqui passamos, ainda não é preciso dar-lhe um nome enquanto o horizonte permanece virgem e o olhar sobrevoa a planura sem fim, tal como esta águia flutua por cima da velha e abandonada torre de controlo do exército jugoslavo. A torre gigante resiste à ferrugem do tempo, qual símbolo arqueológico de uma antiga linha que nunca deixou de ser fronteira e que agora vai ser ainda mais fronteira. Foi a fronteira de Tito, e também foi a fronteira de Kádar e de Moscovo, e agora vai ser a fronteira de Orbán. Foi a fronteira não-alinhada do “socialismo de rosto humano” da Jugoslávia e agora vai ser a fronteira do capitalismo, também de “rosto humano”, de uma União Europeia que, com mais ou menos cosmética, vai incorporando os rostos dos neo-nacionalismos que ganham eleições por estas bandas. Camaleões na paisagem retórica, os “ismos” às vezes tocam-se nos extremos, partilhando fronteiras, mordendo as caudas uns aos outros.
Águias aqui, cruzando os céus, gaivotas lá no Mediterrâneo sobre a Sicília e sobre Lampedusa, e aqui já houve ilhas, noutra era, antes do Homem, quando todo este infinito, agora meio verde-milho, meio loiro-trigo, era o Mar da Panónia. De um campo de girassóis, salta de repente uma lebre para a frente do nosso carro. Nem um único polícia, nem um único refugiado, apenas nós.
E só um de nós é que podia exclamar: “Aqui dava para fazer um belo piquenique!”. Era Móni Bense, professora universitária e tradutora, que descera de Budapeste para a Terra Baixa para me acompanhar neste percurso, enquanto eu subira de Belgrado para a Voivodina. A Terra Baixa húngara e a Voivodina sérvia misturam-se nesta raia, siamesas na geografia, irmãs num mapa humano que a história rasgou várias vezes. Embora muito mais pequeno que a torre titista, é o marco da fronteira tripla que, neste relvado enorme, poderia servir de ponto de encontro para o piquenique desejado por Móni. A toalha estender-se-ia ali, o mais possível em plena terra de ninguém, mesa para todos, goulash por favor. Ela não esteve, mas gostava de ter estado no histórico piquenique de 19 de Agosto de 1989, perto da fronteira austro-húngara entre Sankt Margarethen im Burgenland e Sopronkőhida, em Sopronpuszta, onde húngaros e austríacos organizaram o encontro que o jornal francês Le Monde chamou “o piquenique que fez oscilar a história”.
O primeiro lugar, em toda a Europa, onde a cortina de ferro foi simbolicamente rasgada tinha sido ali muito perto, semanas antes, mas naquele dia de verão, aproveitando o “piquenique paneuropeu”, centenas de alemães de leste (seriam dezenas de milhares no meses seguintes) passaram por ali, para a Áustria, para depois se reencontrarem com as suas famílias na então Alemanha Ocidental. O muro começava a cair ali, mesmo se só iria cair em Berlim quase três meses depois, e com ele o resto da vedação de ferro que, no meio da Europa, dividia o mundo.
Móni era então uma adolescente, talvez crescesse a rir com o Gusztáv, esse mítico desenho animado dos anos sessenta e setenta, produzido pelo Pannónia Filmstúdió, em pleno “comunismo goulash”. Gusztáv era venerado na Hungria, mas também além Panónia, Jugoslávia fora e não só. Certas pessoas viram tantas vezes o mesmo episódio, aqueles cinco ou seis minutos repetidos à exaustão do riso, que sabem de cor algumas dessas pequenas histórias.
Mas noutros ecrãs, as memórias aparentam estar mais diluídas: “a história repete-se dentro de tão pouco tempo que a geração que viveu os seus piores episódios ainda está viva, mas alguns deles parece que já não se lembram”, resigna-se Móni, lamentando essa amnésia parcial de muitos conterrâneos do seu eterno estatuto de migrantes e refugiados, senão de primeira, de segunda ou terceira geração, para andar apenas um século para trás, até ao Tratado de Trianon, no fim da Primeira Guerra. Talvez uma releitura dos trabalhos do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud e uma importante referência para José Gil em Portugal, Hoje - o Medo de Existir, nos ajudasse a compreender como é que por cima de traumas vividos se inscreveu um vazio, uma aparente paralisia do pensamento, capaz de deixar o indivíduo, logo também o cidadão e o eleitor, mais indefeso. Se, de facto, a história se estiver a repetir de alguma maneira, Ferenczi explica, já tinha explicado.

GPS 46.148416, 20.275831
É bem provável que Robert Molnár também tenha crescido com as peripécias de Gusztáv. Aposto que ele teria igualmente gostado de estar naquele “piquenique paneuropeu”, em Agosto de 89. Nesse verão que antecedeu o “Outono dos Povos”, Molnár tinha 18 anos, feitos em Kübekháza, a vila que fica a pouco mais de um quilómetro do Triplex Confinium, onde hoje ele é o presidente da câmara.
Quando deixamos a linha de fronteira e traçamos azimute, através dos campos, rumo ao centro da povoação, já sabemos que não o vamos encontrar, nem em casa, nem na câmara municipal, nem na koscma, o café-taberna local. Ele está uns dias no estrangeiro, em trabalho, mas mesmo assim conversa longamente connosco por telefone. Não é fácil encontrar na Hungria, sobretudo na paisagem política de centro-direita, uma voz tão directa contra a construção da nova barreira.
“Conhecendo a História”, diz ele, “quando um país decidiu construir uma vedação ou um muro, como em Auschwitz-Birkenau, em Berlim ou no resto da fronteira do bloco comunista, isso tornou-se uma praga para quem o construiu”. Para Molnár, “a Hungria já é um país isolado a nível intelectual e psicológico. Isto vai ter como consequência a guetização do país. A Hungria circunfecha-se, o que significa que não há saída nem entrada, nem para fora, nem para dentro. Estamos no meio da Europa, se não conseguirmos navegar em águas pacíficas, isso vai determinar que o espaço de acção dos húngaros se vai reduzindo” até que “as pessoas vão perder a esperança e vão fugir do país”.
Mais do que transformar-se numa ilha, “a Hungria vai guetizar-se”, sublinha este político que, até 2002, tinha sido deputado em Budapeste pelo Szerző, o Partido Independente dos Pequenos Agricultores e Cidadãos. Nessa altura, ele foi expulso do partido e saiu do Parlamento. Voltou à terra onde cresceu e desde então, como independente, dirige os destinos deste município fronteiriço onde vivem cerca de 1500 pessoas.

Triplex Confinium

No Triplex Confinium, um ouvido tísico talvez consiga escutar três sinos, consoante a rosa-dos-ventos: o da igreja de Kübekháza, aqui na Hungria, o de Beba Veche, ali na Roménia, ou o de Rabe, acolá na Sérvia, três povoações que, praticamente equidistantes, formam este triângulo quase equilátero. Juntam-se todos, a cada maio, para uma festa transfronteiriça.
Róbert Molnár faz questão de se declarar cristão praticante para evocar que “é preciso tomar conta dos forasteiros”, a mensagem de Estevão I, rei húngaro, depois Santo Estêvão da Hungria para os crentes. “Está na Bíblia: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti”, recorda, para logo profetizar que “a maldade vai-nos ser devolvida. Se não queremos ser maltratados, não podemos maltratar os outros. Porque como diz uma expressão lembrada por um colega meu, tu lambes o gelado, mas o gelado pode lamber-te de volta”.

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Na kocsma da rua principal, as cervejas e as pálinkas têm muito mais saída do que os gelados. Encostado à entrada, um homem equilibra-se com uma cerveja em cada mão e vai bebendo, ora uma, ora outra. A esplanada da taberna espraia-se entre a casa e a rua, como acontece com todas as casas, com todas as ruas, na Terra Baixa ou na Voivodina. À frente de cada casa, essa faixa ajardinada com cinco ou dez metros, às vezes quinze, cria uma bela transição, uma harmonia em vez de uma fronteira abrupta, entre a madeira da porta e o asfalto da rua - uma terra de ninguém que todos cultivam como se fosse o seu próprio jardim, uma terra de todos. O que nasce ou é plantado nessa faixa é público; aliás, no mundo rural, parece impossível pensar em melhor exemplo de espaço público.

Ali ao lado, uma criança, erguida pelos braços do pai, vai apanhando cerejas. Uma imagem quase espelhada ser-nos-á descrita, noutra kocsma, noutra povoação, pela patroa de serviço. Ela testemunhara “a alegria de um grupo de refugiados, colhendo fruta de uma árvore”. Aqui, na ombreira da kocsma de Kübekháza, a patroa desta banca conta um outro episódio, uma história parecida, que viu na televisão. Aliás, até à nossa visita, no fim de Junho, os refugiados só passaram mesmo pela TV porque, testemunha a nossa anfitriã, ela própria ainda não tinha visto ninguém passar por ali. O único problema concreto de que ela tinha ouvido falar era esse: um refugiado tinha roubado alguns tomates a um agricultor que se queixava do sucedido, na reportagem televisiva, como se isso fosse o fim do mundo. “Coitados”, alguém diz em fundo, com tom de empatia, “tinham fome, na mesma situação, qualquer um de nós faria o mesmo”.

Catástrofe humanitária

Kübekháza ainda não é uma nova Lampedusa, no final da rota balcânica dos migrantes do leste e do sul, mas quer o presidente da câmara municipal, quer a “presidente” da kocsma pressentem que a onda vai chegar. Eles coincidem, quando dizem que, com a barreira fronteiriça a começar no Triplex Confinium, a pouco mais de um quilómetro da vila, “é claro que os refugiados vão dar a volta pela Roménia e depois vão passar por aqui” [o que já está a acontecer, no final de Agosto]. A essa dedução óbvia de quem olha para o mapa, respondeu Péter Szijjártó, o jovem ministro dos Negócios Estrangeiros e do Investimento Externo, afirmando a vários media que “em todos os troços de fronteira onde não existir nenhuma outra forma eficaz de impedir a imigração ilegal [além da linha de divisão entre a Sérvia e a Hungria], será utilizado o instrumento seguro para o encerramento da fronteira”, ou seja, o prolongamento do muro-vedação.
Enquanto o arame farpado ainda não lhe rasga totalmente o horizonte, Robert Molnár, o político ao leme desta vila fronteiriça, avisa que cabe à “Europa ocidental rica encontrar unanimemente uma resposta e que a Hungria não pode ser responsabilizada sozinha, porque esta é uma catástrofe humanitária de todo o mundo”. Mas logo ele volta a olhar para dentro, quando fala do muro como uma decisão do governo no interesse do próprio partido que forma o executivo, o Fidesz [de direita populista; 44,5% nas legislativas de 2014]. Molnár classifica a decisão como um “mero acto de campanha política interna”, em que o estado vai gastar mais de 20 milhões de euros. A estrutura seria assim um enorme cartaz de propaganda política nacionalista, com os tais quase quatro metros de altura e 175 quilómetros de comprimento. Continuando a separar o trigo do joio, o ex-deputado conclui que esta medida “não é contra a imigração, mas serve apenas para Viktor Orbán e o Fidesz tirarem o vento às velas do barco do Jobbik [considerado um partido de extrema-direita; 20,5% nas legislativas de 2014], porque há já radares térmicos instalados em toda a fronteira e 98% dos refugiados são apanhados”.

“Onde estamos nós?”

Num quintal onde Orbán semeia muros, que é também um quintal da Europa. Aqui, na esplanada da koscma, o dia vai escorrendo como o Tisza ou o Danúbio, quais duas cervejas na mão daquele homem de Kübekháza. Na árvore à nossa frente, a criança deixou ainda muitos molhos de cerejas para o primeiro refugiado que passar a fronteira por esta pacata vila. Amanhã ou depois, eles não tardarão a passar por aqui. Talvez Sharbat, talvez Mohammed, gente que havemos de encontrar na estação de comboios de Szeged numa das madrugadas desta viagem, ou talvez Rafiq, que ainda espera, numa fábrica abandonada em Subotica, sem passaporte, que um traficante lhe dê as coordenadas para continuar a viagem.
Enquanto isso, na memória da taberna, ecoa a voz daquele agricultor húngaro a vociferar na televisão que eles lhe roubaram alguns tomates. Eles que escaparam do fim do mundo à espera de encontrar um lugar no éden-fortaleza da União Europeia. Em húngaro, em sérvio e em croata (os dois lados da língua servo-croata), tomate e paraíso são palavras irmãs, com a mesma raiz, significando a fruta-legume e o lugar idílico: paradiscom/paradiscom, paradajz/raj, rajčica/raj. Dava um belo episódio do Gusztáv, penso eu, um ressuscitado Gusztáv transformado em refugiado-ladrão de paraísos, uma selfie-caricatura de que a Hungria e a Europa provavelmente precisam.

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