Fim do jogo em Xangai

Continuação e fim da ficção política do Le Monde. Após semanas de investigação, uma jornalista do Wall Street Journal consegue encontrar a fonte do documento que está prestes a fazer vacilar a zona euro e semear o pânico nas bolsas mundiais.

Publicado em 17 Agosto 2011 às 15:00

Domingo, 10 de junho de 2012, 9 horas, Xangai. Sentada no vestíbulo do Sofitel, Alice J. Singer observa o vaivém dos homens de negócios brasileiros, americanos, coreanos. O mundo dos negócios desfila a frente dos seus olhos. A decoração é banal. Não fossem os traços exóticos da maioria dos visitantes, poderia acreditar que estava num grande hotel de Frankfurt am Main, o seu novo porto de ancoragem.

Durante os primeiros meses sentiu-se muito aborrecida, até que conheceu Matt. Corretor no departamento de ações da Goldman Sachs, conseguiu integrar os códigos da cidade de província sem abrir mão do seu humor nova-iorquino. Foi ele que, verdadeiramente, lhe abriu as portas da cidade. E foi ele, também, quem, pela primeira vez, lhe falou de ‘Ingo’. “Quer muito falar com o correspondente de um grande jornal anglo-saxónico”, tinha-lhe ele dito. Isto aconteceu há três semanas.

Ela falou duas vezes com ‘Ingo’. No início, pareceu-lhe paranóico. Tomava precauções de Sioux. Mas Matt tinha razão: valia a pena. Alice encontrara a fonte da enorme onda contra a qual lutava o BCE desde ha várias semanas. Não podia acreditar no que ouvia. No dia do terceiro encontro, ‘Ingo’ não apareceu. Dois dias depois, ela recebeu uma mensagem de Xangai: “So falo consigo e cara a cara”. Já sabia o suficiente para conseguir convencer o seu editor a mandá-la, a ela, à China, para se encontrar com o seu informador. E é assim que nesta manhã de domingo está a nove mil quilómetros da sua base.

“Alice?

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- Bom dia, Ingo. Que surpresa !”, diz ela, a rir.

“Vamos caminhar.”

Na rua, o barulho dos carros é infernal. Dirigem-se a um parque.

“Ainda não percebi como é que conseguiu escrever aquele texto que me mostrou, Ingo. Porque é que escreveu com o seu próprio punho um falso acordo de coligaçãp entre a CDU-CSU e o FDP?

-Foi ideia do Markus, um amigo que trabalha com um editor de jogos de computador, em Hamburgo. Uma noite em que estava de passagem em Frankfurt, contei-lhe que passava os dias a fazer simulações com o Johannes, um colega da Reuters. Ficou entusiasmado e pediu-me: “Cria-me um jogo político-financeiro sobre o seguinte tema: a queda de Merkel. E eu mostro-o ao meu chefe. Vai ser um sucesso.” Telefonei imediatamente para Londres, para o Johannes, e começámos nessa mesma noite a trabalhar no material. Foi nesse momento que concebi o acordo de coligação. Desenhei mesmo uma nota de 100 deutchemarks [marcos alemães] com a esfinge de Adenauer e a Waschmachine [máquina de lavar].”

Durante várias semanas, os dois amigos brincam aos demiurgos. Escrevem cenários, simulam crashes bolsistas, trocam grandes quantidades de textos e ficheiros. PNG entre Londres e Frankfurt. Quando, a 19 de maio, Ingo descobre a informação do Spiegel Online sobre a conspiração anti-Merkel, reconhece imediatamente o seu acordo de coligação no documento anexo ao artigo.

“A partir desse momento, fiquei muito preocupado. Não percebia como é que os nossos documentos podiam ter ido parar ao sítio do Spiegel e, sobretudo, porque é que eram apresentados como verdadeiros documentos confidenciais.

- Ninguém falou convosco?

- Ninguém.

- Mas como é que os documentos escaparam?

- Talvez tenha havido pirataria informática. Não tínhamos cuidado. Para nós era apenas um jogo.”

Antes de deixar a Europa, Alice falou com Johannes, em Londres. Foi ele que lhe deu a pista dos seus colegas do fundo de investimentos para o qual trabalha. Evidentemente, alguém mexeu na pasta onde guardava os documentos fictícios. Entretanto, também ele se volatizou.

“Quando aquilo saiu, pensei ir à polícia. Mas o Johannes disse-me: “Deixa-te disso, vão-te tomar por mentiroso.”

- Agora, pode ser processado por manipulação de preços.

- Não aqui, definitivamente.

- Não pensa voltar?

- Para assistir ao rebentar da bomba? Não, obrigada.”

Agora, Alice tem todas as peças do quebra-cabeças. Acima de tudo, veio a Xangai gravar um último testemunho e receber o suporte USB com os documentos que ele lhe tinha prometido.

“Obrigada”, diz ela, fazendo deslizar o pequeno objeto para dentro da sua carteira.

Agora, ela sabe mais do que Ingo. Graças às fontes do jornal em Londres, sabe que os documentos foram entregues, pelo chefe do fundo onde trabalhava Johannes, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e ao MI6. A CIA, circunspecta num primeiro momento, deu-lhes finalmente crédito, baseando-se nos seus próprios informadores nos meios políticos alemães.

Às 10 horas, Alice entra no Ibis. Tem duas horas para escrever o artigo. Faltam-lhe, apenas, juntar algumas declarações. Prometeu a Nova Iorque que teria tudo pronto ao meio-dia, hora de Xangai. Na costa leste dos Estados Unidos, serão apenas 20 horas, de sábado. A ideia de que leremos o seu artigo, em Frankfurt ou Paris, apenas na manhã de domingo, à mesma hora em que ela própria estava a entrevistar Ingo, perturba-a. Nunca tinha pensado que os chineses vivam com onze horas de avanço sobre ela.

Domingo, 10 de junho, 19 horas, em Xangai. Alice faz o check-in para o próximo voo para Nova Iorque. Em Paris, são 8 horas. O ministro da Agricultura francês, Bruno Le Maire, saboreia algumas horas de descanso no seu apartamento parisiense. Dentro de pouco tempo irá a Evreux, para votar nas legislativas, acompanhado pela mulher e os dois filhos. Não está muito preocupado com o seu lugar.

Vasculha a pilha de jornais de fim de semana que um polícia, de mota, lhe entregou em casa. Os títulos franceses so falam dos riscos de uma subida da frente Nacional, do cenário de um governo minoritário e da OPA da JP Morgan à Société Générale.

Aborrecido, o deputado refugia-se no Wall Street Journal. Na primeira página, um artigo com um título enigmático chama-lhe a atenção.

“Leaked Document Fake”.

Da nossa enviada especial a Xangai, Alice J. Singer.

“A suposta conspiração contra a chanceler Angela Merkel, que esteve na origem da espetacular queda dos mercados nas últimas semanas, é, de facto, uma piada vulgar. O funesto rumor partiu de uma sala de mercados em Frankfurt. Por uma série de incríveis coincidências, acabou por ser tida como credível pelas mais altas autoridades de informação europeias e americanas antes de ser “revelada”, a 19 de maio, pelo Spiegel Online. Mas o dito acordo secreto publicado pelo sítio do semanário alemão era falso… O WSJ encontrou, em Xangai, onde se refugiou, o homem que está na origem deste caso que pôs Espanha à beira do incumprimento…”

O artigo estende-se ao longo de três colunas, pontuadas por aterradoras confidências do corretor. “Este assunto serviu, manifestamente, os interesses de vários fundos de investimento que, nas últimas semanas, reforçaram as suas posições a curto prazo sobre as soberanias periféricas e as praças financeiras europeias mais vulneráveis. Estes investidores, que tiveram acesso a informações confidenciais, veiculadas por engano pelas chancelarias, usaram-nas em seu proveito próprio, tal como fizeram com a decisão do Tribunal Constitucional alemão de 11 de maio, que também conduziu os mercados a uma acentuada baixa.” “É um acaso particularmente irónico e amoral”, comenta um analista. “Uma vez que as suas fontes eram falsas, o Tribunal confirmou, de alguma maneira, a justiça das suas antecipações. Mas fê-lo cedo demais, limitando assim os ganhos. A Paulson & Co., dirigida por John Paulson, poderia, sozinha, este trimestre, ter tido um lucro de várias centenas de milhares de dólares…”

FIM

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