Notícias Odisseia ao Amanhecer
Estratégia Militar Europeia para a Líbia

Líbia, o último grito de apoio ao ocidente

Enquanto representantes de 40 países e organizações internacionais se reúnem em Londres para chegar a um consenso sobre a Líbia, depois de Kadhafi, o colunista Gideon Rachman do Financial Times argumenta que a guerra terá repercussões que vão muito além do destino do ditador líbio.

Publicado em 29 Março 2011 às 15:27
Vadot  | Estratégia Militar Europeia para a Líbia

Os defensores da intervenção externa acreditam que não estão a lutar apenas para impedir as atrocidades na Líbia, mas para estabelecer um marco para o futuro. Querem mostrar que o tempo em que os ditadores podiam massacrar os seus próprios cidadãos está a terminar. O filósofo francês Bernard Henri-Lévy, que desempenhou um papel improvável como elo de ligação entre os rebeldes líbios e o presidente Nicolas Sarkozy, disse: "Neste caso, o importante foi ter sido reconhecido o "dever de intervir".

Num artigo para The New York Times, Nicholas Kristof faz uma observação semelhante - "As potências mundiais têm o direito e o dever de intervir quando um ditador massacra o seu povo”. Esta ideia foi aprovada pela ONU em 2005 e, segundo Kristof, a intervenção na Líbia está a "dar força a esse conceito incipiente".

Seria bom acreditar que a doutrina da "responsabilidade de proteger", conhecida coloquialmente como R2P, pode agora ser aplicada. Com o avanço rápido das tropas rebeldes ao longo da costa da Líbia, os defensores da intervenção vão sentir-se satisfeitos.

Mas, na realidade, a guerra na Líbia significará mais provavelmente um último grito de apoio ao intervencionismo liberal do que um novo amanhecer. Pois a verdade nua e crua é que as potências ocidentais, os promotores mais entusiásticos da ideia, não terão o poder económico ou o apoio público para sustentar muitas mais intervenções no exterior. E, as potências económicas em ascensão - China, Índia, Brasil e outras - são profundamente céticas acerca do conceito em geral.

Newsletter em português

Poderes ocidentais querem por ordem no mundo

A Grã-Bretanha, a França e os EUA votaram a favor da resolução da ONU que autorizou uma ação de força na Líbia. Mas o grupo conhecido como Brics - Brasil, Rússia, Índia e China – absteve-se. Nenhum deles tem muito tempo para dispensar ao coronel Kadhafi. Mas países como a China, a Índia e o Brasil têm pouco a ganhar e muito a perder, em arriscar fundos, homens e influência em intervenções no estrangeiro. O seu instinto leva-os a não interferir e a concentrar esforços no seu objetivo de longo prazo - a construção do seu próprio poder económico. Um massacre na Líbia pode ser lamentável, sem dúvida, mas Bengasi está muito longe de Pequim ou Brasília.

Existem algumas complicações. A Alemanha absteve-se mas, ao fazê-lo, colocou-se fora da maioria ocidental. A África do Sul, convidada para a próxima cimeira dos Bric, votou a favor da resolução para a Líbia, mas, em seguida, criticou veementemente a campanha de bombardeamentos.

Assim, o quadro geral mantém-se. Os poderes ocidentais estabelecidos ainda sofrem do zelo missionário de por ordem no mundo. As potências emergentes são muito mais cautelosas e egocêntricas. Mas os aliados ocidentais lutam num cenário de recursos cada vez mais reduzidos. Os britânicos acabam de anunciar grandes cortes na defesa e os franceses também se debatem para conter o défice orçamental e manter o seu estado social.

Sucesso tanto pode ser uma cilada como um fracasso

A relutância das instâncias militares americanas em assumir este novo compromisso também tem sido palpável. O presidente Barack Obama e os seus generais sabem que já acabou o tempo em que um presidente dos EUA podia simplesmente dizer que a América iria fazer "o que fosse preciso". O almirante Mike Mullen, chefe do estado-maior general, afirmou que a maior ameaça à segurança nacional dos EUA é o défice orçamental. Na era pós-Iraque e pós-Afeganistão, o apoio público para operações militares no exterior também é limitado.

Claro que, se a intervenção na Líbia tiver uma conclusão rápida e bem-sucedida – com a deposição do Coronel Kadhafi e o aplauso da multidão em Tripoli -, então o intervencionismo liberal será impulsionado. Mas o sucesso tanto pode ser uma cilada como um fracasso. Cada intervenção bem-sucedida dará lugar à procura da próxima - e não haverá falta de candidatos possíveis. Na verdade, a questão já está a ser levantada pela imagem do Governo sírio a disparar sobre os seus cidadãos. No entanto, quantas mais são as solicitações colocadas às potências ocidentais, mais se torna evidente que há um crescente desequilíbrio entre ambição e recursos.

Esse espaço poderia, um dia, ser preenchido se os Brics e outras potências em ascensão mudassem as suas atitudes em relação ao intervencionismo liberal. Mas há muito poucos sinais de que isso venha a acontecer. O Governo chinês, recordado dos acontecimentos na Praça de Tiananmen em 1989, desconfia profundamente da ideia de que os estrangeiros têm o direito de intervir numa nação soberana para evitar abusos dos direitos humanos. O mesmo acontece com os russos, com o que se passou na Tchetchénia.

Potências emergentes não habituadas ao pensamento global

A Índia, o Brasil e a África do Sul são países democráticos sem necessidade de um plano de contingência para matar os respetivos cidadãos. Mas as suas histórias coloniais influenciam-nos a ter uma visão cética sobre os motivos das potências ocidentais que procuram usar o poder militar em todo o mundo. Todos são também potências emergentes que ainda não estão habituadas ao pensamento global.

Em contrapartida, a Grã-Bretanha e a França têm mantido o instinto de pensar globalmente, sem recursos para o sustentar. Até os EUA, de longe a maior potência militar do mundo, dá fortes sinais de estar a perder a vontade de ser o polícia do mundo.

Na era vitoriana, os britânicos cantavam uma canção que dizia - "Não queremos lutar mas, caramba! se quisermos / Temos os navios, temos os homens e temos o dinheiro também". A intervenção na Líbia parece mais uma reposição dessa velha canção do que uma declaração ousada para uma nova era.

Tags

É uma organização jornalística, uma empresa, uma associação ou uma fundação? Consulte os nossos serviços editoriais e de tradução por medida.

Apoie o jornalismo europeu independente.

A democracia europeia precisa de meios de comunicação social independentes. O Voxeurop precisa de si. Junte-se à nossa comunidade!