Não deixemos soçobrar o nosso ideal

A construção europeia permitiu ao Velho Continente recuperar a prosperidade, mas fê-lo perder parte da sua alma, lastima o filósofo espanhol Rafael Argullol. Não é tarde para afirmar os valores que lhe dão força, mas há que fazê-lo rapidamente.

Publicado em 20 Dezembro 2011

Para lá da vista curta dos líderes políticos, um dos aspetos mais deprimentes dos últimos desastres europeus é a indiferença com que os cidadãos olham para os acontecimentos. Naturalmente, mostram-se preocupados perante os revezes económicos e sociais que os podem afetar, mas não há indícios de que a Europa seja, para os europeus, mais do que uma moeda que entrou numa zona de ansiedade. Por isso, algumas pessoas perguntaram-se o que significaria o desaparecimento do euro e, no entanto, ninguém se mostrou preocupado com as consequências civilizacionais do fim do sonho europeu, a verdadeira catástrofe a que, se ninguém a remediar, estamos condenados.

O síndrome do barco imediatamente antes do naufrágio já domina os gestos, de maneira que, empurrados pelo medo, regressam os nacionalismos mais ferozes. Quanto mais tabloide é a imprensa que faz eco do descontentamento, maiores são as acusações, e o pior é que os cidadãos, por contágio ou por iniciativa própria, já começam a atirar flechas uns aos outros.

A causa última da deriva atual é a própria pobreza da perspetiva espiritual que rodeou a construção europeia na segunda metade do século XX. É verdade que houve grandes êxitos no processo, como a supressão de fronteiras ou a aceitação de uma moeda comum, mas falhou sempre a audácia e a criatividade necessárias para desenhar um cenário verdadeiramente entusiasmante. .

A Europa permaneceu como potência vencida

Se, do ponto de vista económico, a Europa conseguiu uma nova prosperidade depois da II Guerra Mundial, culturalmente continuou a ser uma potência derrotada que perdia a sua hegemonia passada. Max Ernst pintou maravilhosamente bem a derrota na Europa depois da chuva. Com o passar dos anos, a Europa recuperou no plano material mas não no espiritual, de maneira que a desolada paisagem pintada por Einst adquiriu um novo simbolismo no meio século de guerra fria e domínio americano, durante o qual os europeus desapareceram na paulatina aculturação que lhes fez perder quase toda a sua característica de identidade.

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A construção europeia apelou mais ao estômago do que à consciência. É verdade que nos primeiros lustros ainda houve estadistas de primeira categoria. Quando estes começaram a rarear, tornou-se evidente a fragilidade civilizadora do projeto europeu. Os avanços na comunicação e nas trocas comerciais não supuseram um reforço decisivo da ideia futura de Europa: os europeus começaram a viajar de uma ponta à outra do continente e até a intercambiar estudantes entre as mais distantes universidades, mas, paradoxalmente, esse dinamismo não sustentou uma arquitetura sólida que alojasse um sentimento comum.

Nunca nos sentimos europeus

A nós, europeus, chamavam-nos europeus na América ou na Ásia, mas na Europa continuámos a não nos sentirmos europeus apesar da mastodôntica exibição das instituições de Bruxelas e de Estrasburgo. O nosso passado era comum e, no entanto, o nosso presente era nubloso e o nosso futuro incerto.

O desafio que revelou este fracasso foi a aprovação da Constituição Europeia, documento que devia sancionar o terceiro nascimento da Europa - depois dos impérios romano e carolíngio - e que, na prática, se transformou no enésimo testemunho de uma rutina burocrática que não de maneira nenhuma implicava o entusiasmo dos europeus. A Constituição Europeia foi, finalmente, um texto assético que de modo algum recolhia a herança espiritual e moral do continente e que não tinha a mínima possibilidade de suscitar uma adesão ativa dos cidadãos.

E, não obstante, o fim do projeto europeu seria o pior que podia acontecer ao mundo, pelo menos, sob o ponto de vista da liberdade. A Europa ainda está a tempo de explicar o porquê e, sobretudo, de ainda está a tempo de o explicar a si própria. Como cidadão europeu, teria gostado que, num exercício radical de autocrítica, a Magna Carta europeia tivesse acolhido o nosso passado colonialista e explorador. E, assim, era um bom momento para recordar ao mundo a contribuição humanista e culta, genuinamente europeia, para a liberdade individual e para a democracia coletiva..

Substituir os mercados pela democracia

Era um bom momento e continua a ser. No meio do torvelinho da chamada “crise universal”, o único caminho possível para a Europa é deslocar a centralidade do omnipresente mercado para devolver o eixo de gravidade à democracia. Nesta operação, fundamentalmente cultural, a Europa ainda podia ser forte e recuperar parte do amor-próprio desaparecido. Pelo contrário, a dissolução definitiva do projeto europeu deixaria o caminho livre a opções totalitárias que gozam de um prestígio, historicamente inesperado, como antídoto eficaz perante a crise. Para Putin, para o Partido Comunista Chinês ou para os xeques árabes a liberdade é um estorvo à boa saúde do mercado.

E esta, precisamente, não deve ser a aposta da Europa, que quiser ser fiel ao melhor de si mesma. Como pátria histórica da democracia, a sua vitalidade depende da sua predisposição para propor a liberdade como a medida que deve prevalecer sempre sobre as outras regras do jogo, em especial as leis que o grande Moloch da especulação quer impor a todo o mundo, incluindo, claro está, aos adormecidos, pusilânimes e egoístas europeus.

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