O enigma da Princesa Hijab

No meio dos acalorados debates sobre identidade nacional e proibição da burca, as intervenções da artista francesa do grafitti que assina Princesa Hijab sobre anúncios de moda no metropolitano de Paris têm agora visibilidade mundial. Mas quem é ela? E importa se não for sequer uma mulher?

Publicado em 12 Novembro 2010 às 16:29

A Princesa Hijab é a artista urbana mais enigmática de Paris. Ataca à noite com sprays de tinta preta e põe véus muçulmanos nas mulheres – e homens – seminuas e de altos penteados de anúncios de moda do Metro. Chama-lhe "hijabização". A sua arte guerrilheira do niqab tem sido vista de Nova Iorque a Viena, incendiando debates sobre o feminismo e o fundamentalismo – mas a sua identidade permanece um mistério.

Na França secular republicana, deve haver poucas intervenções visuais tão poderosas como a colocação de véus grafitados em anúncios de moda. A recente proibição da burca pelo Governo de Nicolas Sarkozy, aprovada em outubro, significa que, a partir de 2011, passa a ser ilegal uma mulher usar véus muçulmanos integrais em público, não apenas em organismos do Estado ou nos transportes públicos, mas nas ruas, nos supermercados e nos empregos do setor privado. O Governo diz que é uma maneira de proteger os direitos das mulheres e de as impedir de serem forçadas pelos homens a cobrir a cara.

Então a Princesa Hijab é uma muçulmana francesa de hijab que se rebela contra o sistema? Seria uma raridade na cena do graffiti de Paris, dominada pelo sexo masculino. É uma fundamentalista religiosa que marca posição sobre a mulher carnal? Mas gosta de deixar à vista pedacinhos mordazes de nádegas e de barrigas. Uma feminista de esquerda que afirma a sua visão da exploração das mulheres? Será mesmo muçulmana?

Analisa alvos nas estações de metro

A Princesa Hijab adeja pelos corredores do Metro de Havre-Caumartin avaliando de alto a baixo os cartazes publicitários alinhados pelas paredes. Concordou num encontro enquanto analisa alvos nas estações para a sua próxima “intervenção do niqab”. Com calças justas Spandex, calções e um casaco de capuz, com uma longa peruca preta a tapar-lhe totalmente a cara, só uma coisa é patente: na casa dos vinte anos, não usa o niqab que se transformou na sua assinatura. Não diz se é muçulmana. Na verdade, é mais do que provável que nem seja sequer uma mulher. Tem um riso cavo e ombros bastante largos. Mas a figura andrógina vestida de preto não confirma o sexo. "A identidade real por trás da Princesa Hijab não tem nenhuma importância", diz a voz grossa por trás da peruca. "O ente imaginado ocupou o primeiro plano e, para todos os efeitos, é uma escolha artística.”

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"Comecei a fazer isto com 17 anos", diz ela (mantemo-nos pelo “ela", porque o personagem é feminino, ainda que a pessoa por trás dele talvez não). "Desenhava mulheres com véus em pranchas de skate e outros suportes gráficos, quando senti que queria defrontar o mundo exterior. Li o ‘No Logo’ de Naomi Klein e isso inspirou-me a arriscar intervir em lugares públicos, tendo como alvo a publicidade."

O primeiro graffiti de véu da Princesa Hijab foi realizado em 2006, uma "niqabização" do poster do álbum da mais famosa cantora de rap de França, Diam' s, que, por estranha coincidência, agora se converteu ao Islão. "É estranho, porque, agora, ela usa mesmo o véu", brinca a Princesa Hijab. Inicialmente, fazia graffitis em homens, mulheres e crianças, e ficava por perto, para apreciar a resposta do público; agora faz ataques-relâmpago. "Dá para perceber que as pessoas se sentem pouco à vontade. Vão a caminho de casa, depois de um dia duro, e deparam-se com isto."

Com a proteção que o Metro de Paris faz dos seus espaços publicitários, o seu trabalho permanece geralmente apenas visível por 45 minutos a uma hora, antes de ser destruído pelos guardas. Tornou-se altamente seletiva, fazendo apenas quatro ou cinco “intervenções de graffiti" em Paris por ano. Mas cada uma é cuidadosamente fotografada e tem a sua vida prolongada pela circulação na Internet.

"Uso mulheres vendadas como um desafio"

Porque faz isto? "Uso mulheres vendadas como um desafio", diz, acrescentando rapidamente que acredita que nenhuma forma de vestir é boa ou má. Deliberadamente “cool” e distanciada, há uma questão que a perturba realmente – e talvez revele um pouco da sua verdadeira identidade: o papel das minorias em França. Para além dos argumentos sobre se as mulheres muçulmanas devem cobrir a cara, o novo ministro da "imigração e identidade nacional” de Sarkozy, com o seu debate nacional sobre o que significa ser francês, estigmatizou os jovens já guetizados de terceira ou quarta geração de emigração. A França tem a maior população muçulmana da Europa, mas o discurso anti-imigrante que prevalece e o que muitos veem como uma proibição absurda da burca aumentaram o sentimento de marginalização dos jovens muçulmanos e das minorias.

A Princesa Hijab vê-se como parte de um novo “graffiti das minorias", que reclama a tomada das ruas. "Se fosse apenas a proibição da burca, o meu trabalho não teria repercussão por muito tempo. Mas penso que essa proibição deu uma visibilidade global à questão da integração em França. Liberdade, igualdade, fraternidade, são princípios republicanos, mas, na realidade, a questão das minorias na sociedade francesa não evoluiu nada em meio século. Os indesejáveis em França continuam a ser os pobres, os árabes, os pretos e naturalmente, os ciganos."

O seu graffiti é particularmente francês na sua essência anticonsumismo e de agressão à publicidade. Pintar um véu em cartazes publicitários funciona visualmente, porque ambos são "dogmas que podem ser questionados". Sente que as raparigas que usam o hijab, outrora estigmatizadas pelas instituições francesas, são agora pelo seu poder de compra, os "consumidores perfeitos” na cada vez mais consumista sociedade francesa. As próximas pichagens vão centrar-se na sua marca favorita, a H&M. Aliás, as suas campanhas publicitárias estão espalhadas por todo o Metro de Paris.

Assim, estes niqabs pretos parecem representar tudo menos religião. "Se sou religiosa?", repete, hesitando. "O espiritual interessa-me, mas isso é pessoal, não me parece que passe para o meu trabalho. A religião interessa-me, os muçulmanos interessam-me, bem como o impacto que podem ter, artística e esteticamente, nos códigos que nos rodeiam, especialmente na moda”, brinca.

E, com esta, a artista de intervenção dos graffitis parte, de saco ao ombro, para trocar o estranho disfarce pela sua própria moda quotidiana, reaparecendo à superfície, enfrentando a luz do dia.

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