Se é para se ser hipócrita, mais vale sê-lo tão espetacularmente que o público fique momentaneamente sem fôlego para conseguir processar o total absurdo que acabou de ser dito. Resulta sempre. Basta perguntar ao primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdoğan, feliz galardoado com o provável último Prémio Internacional Muammar Kadhafi para os direitos humanos.
Erdoğan esteve na Alemanha a dar um pueril conselho aos alemães. Na perspetiva alemã, Erdogan deu uma de Kadhafi, ao acusar efetivamente os alemães de serem racistas por quererem obrigar os três milhões de turcos do país a falar alemão e impedi-los de praticarem a sua religião. "Ninguém pode ignorar os direitos das minorias… Ninguém pode separar-nos da nossa cultura", declarou a uma assembleia de onze mil imigrantes turcos em Dusseldorf. "Os nossos filhos devem aprender alemão, mas devem aprender primeiro turco", adiantou, inadvertidamente dando apoio à altamente duvidosa afirmação de Angela Merkel de que o multiculturalismo "falhou totalmente" na Alemanha, porque os imigrantes se recusam a aprender a língua.
É verdade que nunca foi muito divertido ser imigrante turco na Alemanha. Basta passar algumas horas na companhia de membros do partido de Merkel para perceber o pouco que algumas atitudes mudaram desde que o primeiro Gastarbeiter [emigrante económico] cá entrou, há 50 anos. A cidadania, quando atribuída, foi concedida de uma forma mesquinha, projetada para complicar a vida.
Alevitas sofreram discriminação sistemática
Mas também quem quereria ser um dos 15 milhões de curdos da Turquia? Os limites da tolerância turca manifestar-se-ão quando alguém for suficientemente valente para tentar ensinar primeiro o curdo na escola aos filhos. Quanto à liberdade religiosa, os alevitas (quase um quinto da população muçulmana) sofrem uma discriminação sistemática e até as fraternidades religiosas que formam o núcleo do partido AK de Erdoğan continuam oficialmente proibidas.
O que há de bom em Erdoğan é que, algures dentro dele, o antigo jogador de futebol profissional quer emendar de algum modo esses erros, ou pelo menos alguns deles. O AK fez mais para remediar a longa lista de injustiças do que qualquer governo desde a fundação da República Turca. Contudo, às vezes é difícil saber com que Erdoğan estamos a lidar: o agitador populista que vimos em Dusseldorf, consolando cinicamente a diáspora turca numa preparação para a eleição geral de junho, ou o Ataturco religioso, refundador da Turquia e arauto da paz no mundo?
Algures dentro dele, persiste um homem emocional, facilmente provocado, idealista, vindo de uma família pobre emigrada em Istambul, com todos os complexos que isso envolve. (Abdullah Gul, hoje Presidente da Turquia, costumava dar-lhe pontapés por baixo da mesa para o controlar durante negociações especialmente delicadas com os generais ou delegações europeias.) Apesar das suas tendências cada vez mais quixotescas, do aumento da corrupção e do clientelismo no seu próprio partido, Erdoğan será quase garantidamente eleito para um terceiro mandato, o que não tem precedente. Com o controlo apertado das forças armadas e a liberalização da economia, mudou a política turca de tal modo que o velho Partido Republicano do Ataturco, depois de namorar os extremistas do nacionalismo, elegeu um alevita para o defrontar nas urnas.
Turquia sente-se maltratada pela Europa
Como a maioria dos turcos, Erdoğan tem uma noção muito vaga da história do seu país antes da chamada "independência", e tende a ver o Império Otomano como um período islâmico de 600 anos ininterruptos de progresso e de tolerância universal. Vá dizer isso aos árabes, aos egípcios, aos gregos e aos povos dos Balcãs e do Cáucaso. Muita da ingenuidade da política estrangeira neo-otomana da Turquia resulta dessa apreciação de Erdoğan. A Turquia sente-se maltratada por uma Europa que está cada vez mais voltada para si e menos atraente, e só consegue controlar uma fração da sua explosão económica. Segundo critérios económicos básicos, sente que tem tanto direito a um lugar à mesa europeia como a Roménia ou a Bulgária. Contudo, apenas um dos 35 dossiês das negociações de adesão foi encerrado, desde que começaram as conversações, em 2004.
Mas mesmo a leitura mais superficial da história turca dirá que o seu destino é tão europeu como o da Grã-Bretanha. Foi na Europa que os otomanos recolheram o maior volume de impostos e levantaram os seus exércitos, e de onde veio historicamente o núcleo da elite turca. Basta ver os camiões cheios de televisores, frigoríficos e computadores turcos fazendo bichas de quilómetros nas fronteiras búlgaras e gregas, para ver em que sentido o futuro se desloca. E Erdoğan sabe-o bem, apesar de Sarkozy, Le Pen, o Papa, ou até ele mesmo defenderem, por vezes, que a Europa é um “clube cristão” fechado.