Pormenor da "Torre de Babel" de Bruegel l'Ancien (1563).

Um hino ao multilinguismo

Ao traduzir o seu último ensaio, o filósofo e jurista belga, François Ost, canta um hino ao multilinguismo, a única alternativa à hegemonia do "inglês globalizante".

Publicado em 4 Junho 2009 às 17:43
Pormenor da "Torre de Babel" de Bruegel l'Ancien (1563).

Vejamos o mal-entendido. A maior parte das vezes, é tomado como uma praga, como um verme insidioso que apodrece o fruto da comunicação. Mas se pensarmos bem, vemos que é uma oportunidade. Como o erro é a oportunidade do saber, por obrigar a voltar ao assunto, corrigir-se e avançar. Se tudo o que dizemos fosse imediatamente “bem entendido”, se nos entendêssemos sempre a cem por cento, bastaria falarmos uma vez e ficávamos sem nada para (re)dizer.

O mesmo sucede com as línguas. Existem perto de seis mil. Algumas são vizinhas, irmãs, primas, outras totalmente estranhas, separadas por anos-luz. Há quem seja propenso a pensar que, se só houvesse uma, clara e perfeita, em que as coisas encontrassem um reflexo exacto, todos se poderiam entender sem esforço, escapando à catástrofe de Babel, à dispersão e à inconsolável amargura de se estar condenado à tradução, essa traidora. Pois bem, não é assim.

Essa língua única, fragmento do sonho da língua original ou Ursprache – “aquela em que Deus e Adão conversavam no Paraíso” – seria terrivelmente fastidiosa, mataria na casca qualquer relação e reduziria consideravelmente as “potencialidades de significado”. Viva Babel, viva, pois, o pecado de irreverência dos homens, que lhes fez construir uma torre tão alta como o céu e lhes valeu a punição, a condenação à dispersão e a diferenciação das línguas – pois essa maldição foi um maná.

Esta é a tese defendida por François Ost no seu livro “Traduire. Défense et Illustration du Multilinguisme” (Traduzir. Defesa e Ilustração do Multilinguismo, Fayard). Ost é filósofo e jurista, professor em Genebra e vice-reitor das Facultés Universitaires Saint-Louis, em Bruxelas. A esta imponente obra – cujo subtítulo indica claramente o objectivo: defesa e ilustração do multilinguismo – não falta uma referência, uma nota, um argumento (só lhe falta um índice onomástico). É de um grande rigor, mas, apesar de citar Merleau-Ponty, Quine ou Wittgenstein, Eco, Benveniste ou Antoine Berman, não se destina, longe disso, apenas a especialistas de filosofia da palavra, de semiótica ou de lexicologia. O seu propósito final é político: a Europa pensa em várias línguas, a sua língua é a tradução e mutilar-se-ia política e culturalmente se se submetesse à hegemonia do “global english” (ou “globish”).

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François Ost começa por analisar o mito fundador das torres de Babel: vinte linhas do Génesis (XI, 1-9), nove versículos “rigorosos como um romance de Kafka, enigmáticos como a poesia de Borges”, que deram origem a uma literatura infinita. Começa por se debruçar sobre a “narrativa do texto”, situa-o na economia geral do Génesis, salienta o entrelaçamento complexo dos temas que o constituem, retira a estratificação histórica da sua escrita e passa a um comentário, quase palavra a palavra, comparando simultaneamente algumas traduções francesas e as principais interpretações.

E no lugar do “paradigma babeliano” que incessantemente alimentou as culturas, entrevê “a emergência de um paradigma da tradução, atribuído a um mundo que se pensa em termos de redes e comunicação”.

O livro é essencialmente consagrado à exploração desse novo modelo que obriga a “pensar conjuntamente língua e tradução” (em domínios tão diversos como a interdisciplinaridade das ciências, o diálogo entre religiões, as filosofias, o direito internacional e os direitos nacionais, a sociedade civil e os seus representantes políticos, etc.). Ost examina os “fundamentos imaginários, os desvios históricos, as fronteiras conceptuais, os pressupostos linguísticos, as implicações éticas e as condições políticas de execução”. Daí resulta um verdadeiro hino ao multilinguismo e à “hospitalidade linguística” que é a tradução – “escrita de corpo inteiro”, inventiva, que opera inicialmente dentro de cada língua, antes de trabalhar nas suas fronteiras, e que faz do “intraduzível”, visto como obstáculo, o seu “instrumento” e a sua condição de possibilidade.

Traduzir é trair, é certo, mas é essa traição que, como o mal-entendido, constitui a melhor garantia da busca na tradução, do debate, da troca de opiniões, do “pensamento dialógico”. “Se a tradução fosse absoluta, o espectro da língua única voltaria a surgir e as torres voltariam a vacilar”. Em Babel e em toda a parte.

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