Ponhamo-nos então em marcha pelo Caminho de Salomão, personagem central do último romance de Saramago “A viagem do elefante”. Na Praça de Londres, em Lisboa, junto à casa do Prémio Nobel português da Literatura, catorze pessoas vão tomando lugar num miniautocarro estacionado ao abrigo do sol que já escalda nesta manhã de Junho. Os últimos a acomodar-se são José Saramago e Pilar del Río, a mulher e presidente da fundação com o nome do escritor, entidade promotora da iniciativa.
Das primeiras palavras proferidas por Pilar ao grupo, mal o veículo se põe em movimento em direcção a Belém, o ponto de partida oficial, depreende-se que acabamos de embarcar numa aventura inédita. "Vamos como pioneiros iniciar o Caminho de Salomão", é o desafio lançado, à semelhança do Caminho de Santiago ou do de D. Quixote. "Não sabemos o que vamos encontrar", avisa Pilar, mas logo o marido sentencia: "Asseguro-vos que vamos encontrar maravilhas".
Como não há registos da viagem real, nesta rota portuguesa do elefante Salomão o escritor optou por não mencionar lugares, adensando assim nas páginas do seu último romance uma desejada aura de mistério. Apenas dois pontos são dados a conhecer no livro: o de partida e o de chegada-transformado em presente de casamento por ideia de Dona Catarina da Áustria, mulher de D. João III, ao primo Maximiliano, arquiduque da Áustria, Salomão partiu da cerca onde vivia em Belém rumo a Viena, terminando a etapa nacional em Figueira de Castelo Rodrigo, junto à fronteira com Espanha.
Salomão sai de Bélem a caminho de Viena
"O elefante gostou do que viu e fê-lo saber à companhia, embora em nenhum ponto o itinerário que escolhemos tivesse coincidido com aquele que a sua memória de elefante zelosamente guardava", assim iniciou o autor o texto de balanço sobre este périplo publicado no blog“O Caderno de Saramago”. No final, "a lição desta viagem": "Há que contar com as aldeias históricas, elas estão vivas". Ligá-las num itinerário ou rota, permitindo a sua revitalização, é a tarefa a que a Fundação José Saramago se propõe deitar mãos, explica Pilar del Río, adiantando que já foram iniciados contactos com o Governo português, designadamente com o Ministério da Cultura, e que deverão prosseguir inclusive ao nível do primeiro-ministro.
Se em frente ao Mosteiro dos Jerónimos Saramago nos havia pedido um "esforço de imaginação" para pensarmos no que seria aquele local no século XVI, qualquer coisa como um lamaçal cheio de moscas, onde, algures perto da água, estaria o elefante numa cerca acompanhado pelo seu cornaca, ao chegarmos a Constância pela ponte sobre o rio Zêzere parece que se desenrola à nossa frente a cena descrita por Pilar: "É inevitável Salomão ter aqui tomado banho, chafurdado, borrifado-se todo... os elefantes gostam muito de água".
Constância é a nossa primeira paragem. Mal se abre a porta do autocarro, uma lufada de ar quente faz-nos querer seguir as pisadas do elefante até um dos rios, o Zêzere ou o Tejo, que ali se reúnem num "abraço", como depois escreveu Saramago no blogue, que Camões terá visto mil vezes da janela da casa onde se crê terá vivido.
Cortaram-lhe as patas para fazer bengaleiros
Como o escritor irá comentar na sessão em sua honra na Câmara Municipal, por oposição à duríssima viagem que Salomão e acompanhantes foram obrigados a fazer séculos antes, "estamos muito mal habituados... ar condicionado, aquecimento...". Explica que foi devido ao desrespeito com que Salomão foi tratado após a sua morte (ocorrida cerca de dois anos após a chegada a Viena devido aos rigores do Inverno austríaco) que decidiu contar a história verídica deste elefante: "Depois de morrer, cortaram-lhe as patas para fazer delas bengaleiros. Isso não podia ter sido feito a um elefante que foi de Lisboa andando, atravessando os Alpes...".
A assistência emociona-se, como já havia acontecido ao ouvir uma leitura muito especial, feita pelo próprio autor, de um excerto, dedicado à terra, de "Viagem a Portugal", exemplar trazido por um dos directores da Casa de Camões e que Pilar fez chegar ao marido.
"Castelo Novo é uma das mais comovedoras lembranças do viajante". A terra é pequena mas nem por isso deixou de dar azo a alguma confusão que começava a irritar o escritor: parados num largo grande, com fonte onde gente se abastecia de água, Saramago insistia que aquela não era a praça dos Paços do Concelho, com um pelourinho manuelino e um chafariz ali posto por D. João V, que fazia questão de nos mostrar. "Se este fosse o largo eu teria escrito tanto?!", argumentava referindo-se à sua "Viagem" de há trinta anos. Lá veio a direcção correcta e a informação de que o minibus não tinha acesso pelas ruas estreitas e íngremes.
Junto ao pelourinho finalmente encontrado, foi tempo de ouvir novamente o Nobel ler as palavras por ele escritas há tantos anos. Ao final do dia, Figueira de Castelo Rodrigo e Castelo Rodrigo lá no alto, palco escolhido para o escritor fazer as despedidas de Salomão antes de o elefante entrar em terras espanholas rumo a Valladolid. Na hora da despedida, regista-se a curiosidade da coincidência: Salomão seguiu para Valladolid, Saramago também, para dar uma conferência. O escritor parte satisfeito, diz que o elefante parece ter ganho vida própria, como neste caso em que se transformou num elo de ligação capaz de criar um roteiro entre aldeias e vilas históricas do país.
"Nós, os seres humanos, não somos completamente um caso perdido. E talvez possamos ser um caso encontrado." Foi tudo isto um acto poético? Não só, mas também.