Amartya Sen, em 2010.

Amartya Sen: Vamos trazer a democracia de volta

A crise grega ilustra bem o que acontece quando as autoridades políticas abandonam a sua responsabilidade a favor de entidades que não têm de prestar contas a ninguém, escreve o vencedor do prémio Nobel da Economia 1998.

Publicado em 24 Junho 2011 às 13:05
Amartya Sen, em 2010.

Foi a Europa que conduziu o mundo à prática da democracia. Por isso, é preocupante que os perigos do governo democrático de hoje cheguem pela porta de trás da prioridade financeira e não estejam a merecer a atenção que merecem. Há questões importantes que têm de ser discutidas, como é o caso da governação democrática da Europa poder estar a ser ameaçada pelo papel excessivo das instituições financeiras e das agências de rating, que agora imperam livremente em algumas zonas do terreno político da Europa.

Dois assuntos diferentes têm de ser tratados de forma diferente. O primeiro diz respeito às prioridades democráticas, incluindo aquilo que Walter Bagehot e John Stuart Mill viam como uma necessidade de “governo por discussão”. Supõe que aceitamos que os poderosos patrões da finança têm uma ideia realista daquilo que é preciso fazer, o que reforçaria a necessidade de dar atenção às suas vozes num diálogo democrático. Mas isso não significa permitir que instituições financeiras internacionais e agências de rating tenham o poder unilateral de comandar governos democraticamente eleitos.

Em segundo lugar, é muito difícil ver que os sacrifícios que os líderes financeiros têm vindo a pedir aos países em situação difícil podem levar à viabilidade desses mesmos países e garantam a continuação do euro sem que haja reformas da fusão financeira e sem uma alteração dos membros da zona euro. O diagnóstico dos problemas financeiros feito pelas agências de rating não é a voz da verdade, como ela pretendem fazer crer. Vale a pena recordar que as avaliações das agências de rating a instituições financeiras e empresas antes da crise económica de 2008 apresentaram uma diferença tão abissal com a realidade que o Congresso dos Estados Unidos está a debater a possibilidade de as levar a tribunal.

Uma vez que a maior parte da Europa está agora empenhada em conseguir uma rápida baixa dos deficits públicos através da drástica redução da despesa pública, é essencial controlar de forma realista que impacto terão essas políticas, tanto na vida dos cidadãos como na receita pública através do crescimento económico. A moral elevada do fazer “sacrifício” tem, evidentemente, um efeito intoxicante. É a filosofia do espartilho “certo”: “Se a senhora se sente absolutamente confortável é porque, certamente, vai precisar do tamanho abaixo”. No entanto, se as exigências de adequação financeira também estão ligadas mecanicamente a cortes imediatos, o resultado pode ser a morte da galinha dos ovos de ouro do crescimento económico.

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Esta preocupação diz respeito a vários países, da Grã-Bretanha à Grécia.

O ponto comum da estratégia de “sangue, suor e lágrimas” para a redução do deficit dá uma aparente plausibilidade daquilo que está a ser imposto aos países mais precários, como a Grécia e Portugal. E torna mais difícil a existência de uma voz política unida da Europa que possa levantar-se contra o pânico gerado nos mercados financeiros.

Para além de uma maior visão política, há necessidade de um pensamento económico claro. A tendência para ignorar a importância do crescimento económico na geração de receitas públicas deve ser um dos principais assuntos a ser discutido. A forte ligação entre crescimento e receitas públicas pode ser constatada em vários países, como a China e a Índia, os Estados Unidos e o Brasil.

Também aqui há lições a tirar da história. As enormes dívidas públicas de muitos países, no fim da Segunda Guerra Mundial, causaram uma grande ansiedade, mas o seu peso diminuiu rapidamente graças a um rápido crescimento económico. Da mesma maneira, o grande deficit que o presidente Clinton encontrou quando chegou ao governo, em 1992, dissolveu-se durante a sua presidência, com a grande ajuda de um rápido crescimento económico.

O temor de uma ameaça à democracia não se aplica, evidentemente, à Grã-Bretanha, uma vez que estas políticas foram decididas por um governo legitimado em eleições democráticas. Mesmo que o desenvolvimento de uma estratégia que não tenha sido revelada na campanha eleitoral possa ser razão para uma pausa, este é o género de liberdade que o sistema democrático permite a quem vence as eleições. Mas isso não elimina a necessidade de mais discussão pública, até mesmo na Grã-Bretanha. Também há que reconhecer que as políticas restritivas autoimpostas no Grã-Bretanha parecem dar plausibilidade às ainda mais drásticas medidas impostas à Grécia.

Como é que alguns países europeus se meteram nesta confusão? A extravagância de ter uma moeda única sem maior integração política e económica desempenhou parte do papel, mesmo depois de se saber das transgressões financeiras, sem dúvida cometidas, no passado, por países como a Grécia e Portugal (e mesmo depois da importante afirmação de Mario Monti, segundo o qual uma cultura de “deferência excessiva” na UE permitiu que essas transgressões continuassem por verificar).

Há que elogiar o governo grego – e George Papandreou, o primeiro-ministro, em particular – por estar a fazer o melhor que pode, apesar da resistência política, mas a sofrida vontade de Atenas em cumprir não elimina a necessidade europeia de refletir sobre a razoabilidade das exigências – o dos prazos – impostos à Grécia.

Para mim, não é consolo recordar que sempre me opus firmemente ao euro, apesar de ser um fervoroso apoiante da unidade europeia. A minha preocupação em relação ao euro dizia, em parte, respeito ao facto de cada um dos países abrir mão da liberdade de ter a sua própria política monetária e de fazer ajustes nas taxas de câmbio, o que muito ajudou, no passado, os países em dificuldades, e evitaria a enorme desestabilização das vidas humanas num esforço frenético para estabilizar os mercados financeiros. Pode abrir-se mão da liberdade monetária quando também há integração política e fiscal (como acontece nos vários Estados dos Estados Unidos), mas a casa meio construída da zona euro foi a receita para o desastre. A maravilhosa ideia de uma Europa democraticamente unida foi criada para incorporar um programa precário de fusão financeira incoerente.

Reordenar a zona euro agora tem muitos inconvenientes, mas os assuntos difíceis têm de ser discutidos com inteligência, em vez de permitir que a Europa fique à mercê de ventos financeiros alimentados por mentalidades tacanhas com um histórico de pensamento terrível.

O processo tem de começar por uma restrição imediata do poder sem oposição das agências de rating para darem ordens unilaterais. Estas agências são difíceis de disciplinar, apesar do seu negro historial, mas uma voz bem definida de governos legítimos pode fazer uma grande diferença enquanto as soluções são trabalhadas, especialmente se as instituições financeiras internacionais também colaborarem. Parar a marginalização da tradição democrática da Europa tem uma urgência difícil de exagerar. A democracia europeia é importante para a Europa – e para o mundo.

Análise

Ajuda à Grécia viola o princípio democrático

Quando um governo falha, pode ser mudado. Mas, perante o retumbante fracasso da UE na crise grega, contra quem podemos votar?, pergunta a revista alemã Stern. Os europeus estão privados de um direito fundamental: o de votar. Por isso, é impossível realizar uma ajuda financeira democrática da UE aos gregos. Porque, se a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Nicolas Sarkozy governarem a Grécia, estão a violar a soberania grega, mas se ajudarmos os gregos aceitando uma perde de controlo sobre as nossas próprias finanças, estamos a violar, igualmente, um dos princípios democráticos. O dilema é este: ao ajudarmos os gregos somos, inevitavelmente, maus democratas. E ao não os ajudarmos somos maus europeus. Por isso, a solução é uma união política, eleita pelos cidadãos europeus.

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