Resgate de Chipre
Para os bancos. Para os russos.

“Chantagem substituiu solidariedade”

Segundo a imprensa europeia, ao lançarem um imposto sobre os depósitos bancários, em troca de um plano de ajuda de €10 mil milhões, os dirigentes da zona euro abriram, na melhor das hipóteses, "um precedente perigoso" ou, na pior das hipóteses, fizeram "chantagem".

Publicado em 18 Março 2013 às 16:03
Para os bancos. Para os russos.

O acordo concluído, em 16 de março, entre Chipre, o Eurogrupo e o FMI prevê um imposto de 6,6% sobre os depósitos inferiores a €100 mil, e de 9,9% para os de montantes superiores. Qualificada como "arbitrária", "de expropriação" ou "arriscada", a medida ameaça a solidariedade entre os países da zona euro e até a livre circulação de capitais no seio da União, sublinham os comentadores.

Sob o título de primeira página "Europa atamanca mais um resgate", o Financial Times critica o inesperado imposto sobre depósitos bancários e acrescenta que "a zona euro voltou a cair nos velhos vícios, quando ainda mal começara a definir o rumo correto para a luta contra uma crise da dívida em mutação contínua":

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Ainda que possa ser legal, esta violação grosseira do espírito da segurança dos depósitos – na UE, os detentores de pequenas poupanças têm a garantia de que os depósitos até €100 mil estão a salvo, por mais moribundo que o seu banco esteja – trai de forma imperdoável aqueles que têm mais a perder e menos por que responder. […] Perante um Estado-membro prestes a afundar-se, em vez de lançarem uma boia de salvação a Chipre, os dirigentes põem-lhe uma pedra ao pescoço. […] A estrutura dos balanços dos bancos cipriotas significava que alguns depósitos teriam de ser atingidos. Mas a afirmação do Presidente Nicos Anastasiades de que não há alternativa ao plano atual é um insulto aos pequenos detentores de poupanças e pequenos empresários cipriotas. […] Para a Europa, os riscos são significativos. […] O maior risco é de ordem política. A receita universal de austeridade, combinada com o tratamento com luvas de pelica dispensado aos grandes investidores nos bancos, é cada vez mais nociva para os eleitores europeus. Os dirigentes limitaram-se a atirar achas para a fogueira.

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Para o jornal Público, de Lisboa, o plano de resgate é pura e simplesmente um desfalque do Eurogrupo, que é acusado de introduzir o confisco e a arbitrariedade nas práticas políticas da União Europeia:

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As palavras já são conhecidas. Uma vez mais, não havia alternativa. De entre todas, esta solução era a menos ‘dolorosa’. Mas o inqualificável resgate a Chipre aprovado pelos ministros do Eurogrupo na madrugada de sábado mostra que o valor das palavras na União Europeia está a sofrer uma forte desvalorização. Onde existiam cidadãos europeus com direitos, existem hoje cidadãos cujos depósitos bancários podem ser taxados sem aviso prévio, como aconteceu em Chipre. […] A arbitrariedade e o desprezo absoluto pelas regras estabelecidas e pelos valores da União tornaram-se comuns. Por tudo isto, o que se passou este fim de semana é uma página negra na História da Europa. [...] A democracia tornou-se relativa. E a chantagem substituiu a solidariedade. As palavras mudaram. É essa a verdadeira crise da Europa.

"Um imposto sobre as poupanças é bom, mas tirar dinheiro aos cipriotas poderá revelar-se destrutivo", escreve o Trouw. Embora compreendendo a indignação, este diário de Amesterdão considera que as autoridades fiscais locais fizeram de Chipre um porto seguro para as poupanças e que a ilha parece ser um "destino popular para o dinheiro sujo". A ideia de atenuar os problemas financeiros da ilha

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tem aspetos que a tornam recomendável. […] Mas o acordo concluído neste fim de semana, em Bruxelas, equivale a expropriação. Os detentores de poupanças perderam simplesmente parte do seu dinheiro. Este aplica-se não só aos russos ricos, mas também aos cipriotas detentores de pequenas poupanças.

O diário de Milão Il Sole 24 Ore acredita que aceder às contas de Chipre para conceder um resgate constitui "um precedente perigoso que afeta a confiança". "O que irá acontecer agora à liberdade de circulação de capitais na UE?", pergunta o jornal, que acrescenta:

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É certo que os principais contribuintes para o imposto serão capitais russos, que foram atraídos por uma legislação fiscal generosa […] e por uma lei contra o branqueamento de dinheiro muito vaga. Mas isso não basta para dissipar as dúvidas sobre uma medida arriscada e que poderá deixar uma marca indelével entre os detentores de poupanças, que têm coração de coelho, pernas de lebre e memória de elefante.

"Tributar para salvar", resume o Kommersant, em Moscovo. Ao tributar os depósitos bancários, a "UE decidiu salvar o sistema bancário cipriota por meio da economia russa, sem consultar a Rússia", salienta este diário, que avalia em 20 mil milhões de dólares [€15,43 mil milhões] o montante dos bens russos em bancos cipriotas, num total de 90 mil milhões de dólares [€69,46 mil milhões]. Mas, enquanto o Presidente Vladimir Putin qualifica o plano de ajuda de "injusto, não profissional e perigoso", o Kommersant considera que:

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Desde 2011, que o Governo russo tem falado tanto de ‘des-deslocalização’ da economia cipriota [isto é, que Moscovo queria repatriar para a Rússia os capitais colocados em países como Chipre], que não tem o direito moral de condenar o apoio mais eficaz para o Governo de Chipre. […] O sentido oculto desse ‘imposto’ é a manutenção da situação atual, porque o Ministério das Finanças russo pusera como condição para a renovação do seu crédito a Chipre a divulgação de informações sobre os beneficiários russos da economia cipriota.

"Ninguém pode medir as consequências desta decisão", considera Le Monde, e em especial "o possível efeito de contágio do plano cipriota":

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Os europeus e o FMI correram o risco de relançar a desconfiança relativamente à moeda única. Na segunda-feira, as Bolsas e o euro estavam em baixa. Convém garantir que os detentores de poupanças espanhóis, portugueses, irlandeses e italianos não vão, por seu turno, levantar as suas economias, claramente bem pouco em segurança nos bancos.

Na Alemanha, o Süddeutsche Zeitung considera que este "ataque contra a poupança" é "o último tabu quebrado" na crise do euro:

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É verdade que a situação era complicada. As negociações sobre um pacote de resgate para Chipre arrastavam-se havia nove meses e ninguém queria ceder. […] A Alemanha é a maior economia da zona euro, o que implica que tem uma maior responsabilidade financeira e, na dúvida, terá de pagar mais. Em contrapartida, isso não quer dizer que a Alemanha tenha mais peso nas decisões relativas ao euro. A Alemanha é apenas um dos 17 países da zona euro. As somas que a França, a Itália ou a Espanha têm de pagar são apenas um pouco inferiores àquela que os alemães pagam. Mas nenhum destes países reivindicou que se utilizasse o pequeno Chipre para testar o que acontece, quando se quebra mais um tabu e se pede aos detentores de poupanças que levantem o dinheiro.

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