Desfraldando a Union Jack Europeia. (Imagem: Presseurop)

Fazer bluff com a soberania

Os opositores ao Tratado de Lisboa afirmam há muito que o Tratado é o toque de finados para os governos nacionais. Mas quando se trata da alta finança e do sistema bancário, a soberania não tem grande importância para eurocépticos como os conservadores britânicos, afirma Seumas Milne, no Guardian.

Publicado em 6 Novembro 2009 às 17:39
Desfraldando a Union Jack Europeia. (Imagem: Presseurop)

Agora, já sabemos o que vale uma "garantia firme" de David Cameron. O abandono, pelo líder dos "tories", do compromisso de realizar um referendo sobre "qualquer tratado europeu" resultante das negociações de Lisboa vem indiscutivelmente confirmar o aviso pessoal de William Hague de que a Europa é a sua "bomba-relógio". Nem sequer pode optar pelo frágil argumento do Governo de que a sua própria promessa de um referendo se referia apenas à materialização inicial do Tratado de Lisboa como constituição europeia.

Sempre que tiveram oportunidade de votar sobre esta fortaleza de poder inexplicável e prerrogativas corporativas, os europeus rejeitaram-na – ou, no caso da Irlanda, foram obrigados a votar até darem a resposta certa. Mais uma vez, seguindo uma tradição com décadas de existência, as elites europeias esmagaram a opinião pública e impuseram a ordem que pretendiam. Não fora as negociações de bastidores, até há poucos dias havia ainda a perspectiva absurda de o co-arquitecto da catástrofe do Iraque ser imposto à Europa como seu Presidente não eleito.

Agora que o Tratado de Lisboa foi ratificado, Cameron tentou apagar a memória da sua garantia descartada com uma nova promessa: uma luta persistente para devolver as liberdades aos verdadeiros ingleses, repatriar de Bruxelas os poderes nas áreas social, do emprego e da justiça e alterar a lei para impor o referendo na Grã-Bretanha sobre qualquer futura alteração constitucional cozinhada na Europa.

Mas isto é sobretudo bravata. Não está agendada mais nenhuma alteração constitucional. A Grã-Bretanha já beneficia de uma cláusula efectiva de não participação no que se refere à parte do Tratado de Lisboa sobre migração e justiça. E a ideia de ver um governo "Tory" bater-se contra a pequena parte da União Europeia que é realmente popular na Grã-Bretanha deve fazer pensar duas vezes até o nacionalista mais aguerrido. Cameron iria mesmo entrar numa guerra contra as férias de quatro semanas, os direitos iguais para trabalhadores a tempo parcial e a licença parental – os "trunfos" de Bruxelas para conseguir a aceitação do mercado único?

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Talvez não seja de espantar que os dirigentes conservadores tenham julgado necessário tentar convencer a sua facção eurocéptica, trocando o principal agrupamento europeu de centro-direita por uma aliança com a franja de extrema-direita, e estejam agora a esforçar-se por defender as suas ligações com o político polaco Michal Kaminski, admirador do general Pinochet, com um historial fascista e anti-semita comprovado, e com a Aliança Pátria e Liberdade, da Letónia, que defende pensões militares para os veteranos das Waffen-SS.

Mas, a despeito de todas as manifestações de desagrado, há vários tipos de interferência de Bruxelas que não suscitam objecções dos "tories". Não se ouve nenhum político conservador denunciar o Tratado de Lisboa por, por exemplo, este transformar de facto em objectivo constitucional a liberalização e privatização de serviços públicos (os transportes e a energia são os novos alvos). Outra coisa não seria de esperar da parte de apoiantes, mais entusiastas do que o New Labour, da ideologia neoliberal que sustenta essa legislação.

Também ninguém ouviu George Osborne, o ministro-sombra das Finanças do Partido Conservador, queixar-se da muito pública ingerência de Neelie Kroes, a não eleita Comissária da Concorrência da UE, no sistema bancário britânico. Conhecida como Steely Neelie [Neelie de Aço], a defensora da economia de mercado neerlandesa, ordenou a venda de centenas de filiais de seguradoras, em troca do acordo de Bruxelas para o segundo e avultado pacote de ajuda financeira ao parcialmente nacionalizado Royal Bank of Scotland e ao Grupo Lloyds Banking. Em vez de criticar uma ingerência tão crua dos detestados burocratas de Bruxelas, Osborne saudou o papel da UE e proclamou que fora sua a ideia de dividir os bancos para fomentar a concorrência.

Na realidade, as vendas forçadas não deverão introduzir uma concorrência significativa no altamente concentrado sector bancário britânico mas devem proporcionar belas colheitas a sociedades como a Santander e a Virgin. No entanto, mais uma vez, o Governo está a injectar biliões de libras em bancos de que é em grande medida proprietário mas cujo controlo e gestão no interesse público se recusa a assumir. Num momento em que os bancos do Estado deveriam ser o motor da retoma, expandindo o crédito para combater a recessão, os empréstimos bancários estão na realidade a diminuir drasticamente, o que trava o crescimento.

Durante demasiado tempo, as críticas à União Europeia foram dominadas por um falso eurocepticismo chauvinista, que ignora os interesses neoliberais que têm impulsionado o seu desenvolvimento. A postura ontem assumida por Cameron sobre o referendo e uma lei para impedir a transferência de mais poderes para a UE não põe isso em causa. Tal como o New Labour, quando se trata do poder do mundo empresarial ou dos EUA, os "tories" aceitam totalmente a perda de soberania democrática ou nacional.

Seumas Milne

Contraponto

Um referendo "purificador"

Agora que o Tratado de Lisboa está ratificado, o líder dos conservadores, David Cameron, o provável sucessor de Gordon Brown no cargo de primeiro-ministro britânico, em 2010, foi forçado a renunciar à sua anterior promessa de realizar um referendo no Reino Unido sobre o controverso documento. Estas embaraçosas manobras de recuo tiveram as suas consequências, despoletando a demissão de dois eurodeputados conservadores. Num artigo publicado na edição de hoje do Daily Telegraph, um desses deputados ao Parlamento Europeu, Dan Hannan, destaca os motivos que o levaram a essa decisão. O Tratado de Lisboa, argumenta, ameaça "a legitimidade das nossas instituições representativas". "Dos 646 deputados de Westminster", recorda, "638 foram eleitos com base na promessa de um referendo… sobre se iremos participar nas suas disposições, enquanto país". Refutando o apelo unificador do líder do partido que abandonou, Hannan defende um "poder do povo puro e duro" ao estilo helvético, com "referendos por iniciativa dos cidadãos e o resto dos instrumentos de democracia directa". Um referendo sobre a Europa, diz a concluir, seria "uma limpeza profunda" e iria, pelo menos, "decidir se o nosso país continua subordinado ou se torna autónomo".

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